“Notre charge apostolique” – São Pio X
NOTRE CHARGE APOSTOLIQUE
Sobre os erros do Sillon
Sobre os erros do Sillon
Carta Apostólica do Papa S. Pio X
promulgada em 25 de Agosto de 1910
promulgada em 25 de Agosto de 1910
CARTA APOSTÓLICA
A nossos amados filhos Pedro-Heitor Coullié, Cardeal Presbítero da Santa Igreja Romana, Arcebispo de Lyon; Luís-Henrique Luçon, Cardeal Presbítero da Santa Igreja Romana, Arcebispo de Reims; Paulino-Pedro Andrieu, Cardeal Presbítero da Santa Igreja Romana, Arcebispo de Bordéus, e a todos os outros nossos Veneráveis Irmãos Arcebispos e Bispos da França: Sobre o Sillon.
PIO X, Papa
Veneráveis Irmãos, Saudação e Benção Apostólica.
1. Nosso encargo apostólico Nos impõe o dever de vigiar sobre a pureza da fé e a integridade da disciplina católica, de preservar os fiéis dos perigos do erro e do mal, sobretudo quando o erro e o mal lhes são apresentados numa linguagem atraente, que, encobrindo o vago das idéias e o equívoco das expressões sob o ardor do sentimento e a sonoridade das palavras, pode inflamar os corações por causas sedutoras mas funestas. Tais foram, outrora, as doutrinas dos pretensos filósofos do século XVIII, as da Revolução e as do Liberalismo, tantas vezes condenadas; tais são ainda hoje as teorias do Sillon, que, sob aparências brilhantes e generosas, muitas vezes carecem de clareza, de lógica e de verdade, e, por este aspecto, não exprimem o gênio católico e francês.
Ao “Sillon” não faltavam relevantes qualidades
2. Durante muito tempo hesitamos, Veneráveis Irmãos, em dizer pública e solenemente Nosso pensamento sobre o Sillon. Foi necessário que vossas preocupações se viessem somar às Nossas para que Nos decidíssemos a fazê-lo. Porque amamos a valente juventude alistada sob a bandeira do Sillon, e a julgamos digna, por muitos aspectos, de elogio e de admiração. Amamos seus chefes, em que Nos é grato reconhecer almas elevadas, superiores às paixões vulgares e animadas do mais nobre entusiasmo pelo bem. Vós os vistes, Veneráveis Irmãos, penetrados de um sentimento muito vivo de fraternidade humana, ir ao encontro daqueles que trabalham e sofrem para os levantar, animados no seu devotamento pelo amor a Jesus Cristo e pela prática exemplar da religião.
3. Foi nos dias seguintes à memorável Encíclica de Nosso predecessor, de feliz memória, Leão XIII, sobre a condição dos operários. A Igreja, pela boca de seu Chefe supremo, havia derramado sobre os humildes e os pequenos todas as ternuras do seu coração materno, e parecia convocar, por seus anelos, campeões sempre mais numerosos da restauração da ordem e da justiça em nossa sociedade perturbada. Os fundadores do Sillon não vinham, no momento oportuno, colocar a seu serviço esquadrões jovens e crentes para a realização de seus desejos e de suas esperanças? E, de fato, o Sillon levantou, entre as classes operárias, o estandarte de Jesus Cristo, o sinal da salvação para os indivíduos e as nações, alimentando sua atividade social nas fontes da graça, impondo o respeito da religião nos ambientes menos favoráveis, habituando os ignorantes e os ímpios a ouvir falar de Deus, e, muitas vezes, em conferências contraditórias, em face de um auditório hostil, levantando-se, espiaçados por uma questão ou por um sarcasmo, para proclamar alta e briosamente a sua fé. Eram os bons tempos do Sillon; era o seu lado bom, que explica os encorajamentos e as aprovações que não lhe regatearam o episcopado e a Santa Sé, enquanto este fervor religioso pode encobrir o verdadeiro caráter do movimento sillonista.
Mas era ainda maior a gravidade de seus defeitos
4. Porque, é necessário dizê-lo, Veneráveis Irmãos, nossas esperanças, em grande parte, foram ludibriadas. Houve um dia em que o Sillon começou a manifestar, para olhares clarividentes, tendências inquietantes. O Sillon se desorientava. Podia ser de outra forma? Seus fundadores, jovens, entusiastas e cheios de confiança em si mesmos, não estavam suficientemente armados de ciência histórica, de sã filosofia e de forte teologia para afrontar, sem perigo, os difíceis problemas sociais, para os quais tinham sido arrastados por sua atividade e por seu coração, e para se premunir, no terreno da doutrina e da obediência, contra as infiltrações liberais e protestantes.
Que forçaram o Papa a condená-lo
5. Os conselhos não lhes faltaram, e, após os conselhos, vieram as admoestações. Mas tivemos a dor de ver que tanto uns como outras deslizavam sobre suas almas fugitivas, e ficavam sem resultado. As coisas vieram assim a tal ponto que Nós trairíamos Nosso dever, se, por mais tempo, guardássemos silêncio. Devemos a verdade a nossos caros filhos do Sillon, que um ardor generoso arrebatou para um caminho tão falso quanto perigoso. Devemo-la a um grande número de seminaristas e de padres que o Sillon subtraiu, senão à autoridade, pelo menos à direção e à influência de seus Bispos. Devemo-la, enfim, à Igreja, onde o Sillon semeia a divisão, e cujos interesses compromete.
O “Sillon” procura furtar-se à Autoridade da Igreja
6. Em primeiro lugar, convém censurar severamente a pretensão do Sillon de escapar à direção da Autoridade Eclesiástica. Os chefes do Sillon, com efeito, alegam que se movem num terreno que não é o da Igreja; que só têm em vista interesses de ordem temporal e não de ordem espiritual; que o sillonista é simplesmente um católico dedicado à causa das classes trabalhadoras, às obras democráticas, e que haure nas práticas de sua fé a energia de seu devotamento; que nem mais nem menos que os artífices, os trabalhadores, os economistas e os políticos católicos, ele se acha submetido às regras de moral comuns a todos, sem estar subordinado, nem mais nem menos do que aqueles, de uma forma especial à autoridade eclesiástica.
7. A resposta a estes subterfúgios não é senão demasiado fácil. A quem se fará crer, com efeito, que os sillonistas católico, que os padres e os seminaristas alistados em suas fileiras só têm em vista, em sua atividade social, o interesse temporal das classes trabalhadoras? Sustentar tal coisa, pensamos, seria fazer-lhes injúria. A verdade é que os chefes do Sillon se proclamam idealistas irredutíveis, que pretendem reerguer as classes operárias, reerguendo, antes de mais nada, a consciência humana; que têm uma doutrina social e princípios filosóficos e religiosos para reconstruir a sociedade sobre um novo plano; que têm uma concepção especial sobre a dignidade humana, a liberdade, a justiça e a fraternidade, e que, para justificar seus sonhos sociais, apelam para o Evangelho, interpretando à sua maneira, e, o que é ainda mais grave, para um Cristo desfigurado e diminuído. Além disso, estas idéias eles as ensinam em seus círculos de estudo, eles as inculcam a seus companheiros, eles as fazem penetrar em suas obras. São, pois, verdadeiramente, professores de moral social, cívica e religiosa, e, quaisquer que sejam as modificações que possam introduzir na organização do movimento sillonista, temos o direito de dizer que a finalidade do Sillon, seu caráter, sua ação pertencem ao domínio moral, que é o domínio próprio da Igreja, e que, em conseqüência, os sillonistas se iludem quando crêem mover-se num terreno em cujos confins expiram os direitos do poder doutrinário e diretivo da Autoridade Eclesiástica.
8. Se suas doutrinas fossem isentas de erro, já teria sido uma falta muito grave à disciplina católica o subtrair-se obstinadamente à direção daqueles que receberam do céu a missão de guiar os indivíduos e as sociedades no reto caminho da verdade e do bem. Mas o mal é mais profundo, já o dissemos: o Sillon, arrastado por um mal compreendido amor dos fracos, descambou para o erro.
As tendências igualitárias do “Sillon”
9. Com efeito, o Sillon se propõe o reerguimento e a regeneração das classes operárias. Ora, sobre esta matéria os princípios da doutrina católica são fixos, e a história da civilização cristã aí está para atestar sua fecundidade benfazeja. Nosso Predecessor, de feliz memória, recordou-os em páginas magistrais, que os católicos ocupados em questões sociais devem estudar e ter sempre sob os olhos. Ensinou, de modo especial, que a democracia cristã deve “manter a diversidade das classes, que é seguramente o próprio da cidade bem constituída, e querer para a sociedade humana a forma e o caráter de Deus, seu autor, lhe imprimiu”. Censurou “uma certa democracia que vai até aquele grau de perversidade de atribuir, na sociedade, a soberania ao povo e de pretender a supressão e o nivelamento das classes”. Ao mesmo tempo, Leão XIII impunha aos católicos um programa de ação, o único programa capaz de recolocar e de manter a sociedade sobre suas bases cristãs seculares. Ora, que fizeram os chefes do Sillon? Não somente adotaram um programa e um ensinamento diferentes dos de Leão XIII (o que já seria singularmente audacioso da parte de leigos, que se colocam, assim, em concorrência com o Soberano Pontífice, como diretores da atividade social da Igreja); mas rejeitaram abertamente o programa traçado por Leão XIII, e adotaram um outro, que lhe é diametralmente oposto; além disso, rejeitam a doutrina relembrada por Leão XIII sobre os princípios essenciais da sociedade, colocam a autoridade no povo ou quase a suprimem, e toma, como ideal por realizar, o nivelamento das classes. Caminham, pois, ao revés da doutrina católica, para um ideal condenado.
10. Bem sabemos que se gabam de reerguer a dignidade humana e a condição demasiado desprezada das classes trabalhadoras, de tornar justas e perfeitas as leis do trabalho e as relações entre capital e os assalariados, enfim, de fazer reinar sobre a terra uma justiça melhor, e mais caridade, e de, por movimentos sociais profundos e fecundos, promover na humanidade um progresso inesperado. E, certamente, não condenamos estes esforços, que seriam excelentes, sob todos os aspectos, se os sillonistas não esquecessem que o progresso de um ser consiste em fortificar suas faculdades naturais por novas energias e facilitar o jogo de sua atividade no quadro e de acordo com as leis de sua constituição; e que, pelo contrário, ferindo seus órgãos essenciais, quebrando o quadro de suas atividades, impele-se o ser não para o progresso, mas para a morte. Entretanto, é isto que eles querem fazer com a sociedade humana; seu sonho consiste em trocar-lhe as bases naturais e tradicionais e prometer uma cidade futura edificada sobre outros princípios, que ousam declarar mais fecundos, mais benfazejos do que os princípios sobre os quais repousa a atual cidade cristã.
11. Não, Veneráveis Irmãos – e é preciso lembrá-lo energicamente nestes tempos de anarquia social e intelectual, – a cidade não será contruída de outra forma senão aquela pela qual Deus a construiu; a sociedade não será edificada se a Igreja não lhe lançar as bases e não dirigir os trabalhos; não, a civilização não mais está para ser inventada nem a cidade nova para ser construída nas nuvens. Ela existiu, ela existe; é a civilização cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurá-la sem cessar sobre seus fundamentos naturais e divinos contra os ataques sempre renascentes da utopia malsã, da revolta e da impiedade: omnia instaurare in Christo. E para que não Nos acusem de julgar muito sumariamente e com rigor não justificado as teorias sociais do Sillon, queremos rememorar-lhe os pontos essenciais.
As doutrinas subversivas e revolucionárias do “Sillon”
12. O Sillon tem a nobre preocupação da dignidade humana. Mas esta dignidade é compreendida ao modo de certos filósofos, que a Igreja está longe de poder aprovar. O primeiro elemento desta dignidade é a liberdade, entendida neste sentido que, salvo em matéria de religião, cada homem é autônomo. Deste princípio fundamental tira as seguintes conclusões: Hoje em dia, o povo está sob tutela, debaixo de uma autoridade que é distinta dele, e da qual se deve libertar: emancipação política. Está sob a dependência de patrões que, detendo seus instrumentos de trabalho, o exploram, o oprimem e o rebaixam; deve sacudir seu jugo: emancipação econômica. Enfim, é dominado por uma casta chamada dirigente, à qual o desenvolvimento intelectual assegura uma preponderância indevida na direção dos negócios; deve subtrair-se à sua dominação: emancipação intelectual. O nivelamento das condições, deste tríplice ponto de vista, estabelecerá entre os homens a igualdade, e esta igualdade é a verdadeira justiça humana. Uma organização política e social fundada sobre esta dupla base, liberdade e igualdade (às quais logo virá acrescentar-se a fraternidade), eis o que eles chamam Democracia.
13. No entanto, a liberdade e a igualdade não constituem senão o lado, por assim dizer, negativo. O que faz, própria e positivamente, a Democracia é a participação maior possível de cada um no governo da coisa pública. E isto compreende um tríplice elemento, político, econômico e moral.
14. Em primeiro lugar, em política, o Sillon não abole a autoridade; pelo contrário, considera-a necessária; mas a quer partilhar, ou para melhor dizer, a quer multiplicar de tal modo que cada cidadão se tornará uma espécie de rei. A autoridade, é certo, emana de Deus, mas reside primordialmente no povo e daí deriva por via de eleição ou, melhor, ainda, de seleção, sem por isto deixar o povo e se tornar independente dele; ela será exterior, mas somente na aparência; na realidade, ela será interior, porque será uma autoridade consentida.
15. Guardadas as proporções, acontecerá o mesmo na ordemeconômica. Subtraído a uma classe particular, o patronato será multiplicado de tal modo que cada operário se tornará uma espécie de patrão. A forma invocada para realizar este ideal econômico não é, afirma-se, a do socialismo, é um sistema de cooperativa suficientemente multiplicadas para provocar uma concorrência fecunda e para salvaguardar a independência dos operários, que não ficariam adstritos a nenhuma delas.
16. Eis agora o elemento capital, o elemento moral. Como a autoridade, já se viu, é muito reduzida, é necessária uma outra força para completá-la e opor uma reação permanente ao egoísmo individual. Este novo princípio, esta força, é o amor do interesse profissional e do interesse público, quer dizer, da finalidade mesma da profissão e da sociedade. Imaginai uma sociedade onde, na alma de cada um, com o amor inato do bem individual e do bem familiar, reinasse o amor do bem profissional e do bem público, onde, na consciência de cada um, estes amores, se subordinassem de tal modo, que o bem superior dominasse sempre o bem inferior; uma sociedade não poderia quase dispensar a autoridade e não ofereceria o ideal da dignidade humana, cada cidadão tendo uma alma de rei, cada operário uma alma de patrão? Arrancado à estreiteza de seus interesses privados e elevado até os interesses de sua profissão e, mais alto, até os da nação inteira e, mais alto, até os da humanidade (porque o horizonte do Sillon não se detém nas fronteiras da pátria, mas se estende a todos os homens até os confins do mundo), o coração humano, alargado pelo amor do bem comum, abraçaria todos os companheiros da mesma profissão, todos os compatriotas, todos os homens. E eis aí a grandeza e a nobreza humana ideal, realizada pela célebre trilogia: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
17. Ora, estes três elementos, político, econômico e moral, estão subordinados um a outro, e é o elemento moral, como dissemos, que é o principal. Com efeito, nenhuma democracia política é viável se não tem profundos pontos de contato com a democracia econômica. Por sua vez, nem uma nem outra são possíveis se não se radicam num estado de espírito em que a consciência se acha investida de responsabilidades e de energias morais proporcionadas. Mas, supondo este estado de espírito, assim feito de responsabilidade consciente e de forças morais, a democracia econômica daí decorrerá naturalmente por tradução em atos, desta consciência e destas energias; e, igualmente, e pela mesma via, do regime corporativo sairá a democracia política e econômica, esta trazendo aquela, se acharão fixadas na própria consciência do povo sobre bases inabaláveis.
18. Tal é, em resumo, a teoria, poder-se-ia dizer o sonho, do Sillon, e é para isto que tende seu ensinamento e aquilo que chama a educação democrática do povo, quer dizer, levar ao máximo a consciência e a responsabilidade cívicas de cada qual, donde decorrerá a democracia econômica e política, e o reino da justiça, da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
19. Esta rápida exposição, Veneráveis Irmãos, já vos mostra claramente quanto tínhamos razão em dizer que o Sillon opõe doutrina a doutrina, que edifica sua cidade sobre uma teoria contrária à verdade católica e que falseia as noções essenciais e fundamentais que regulam as relações sociais em toda a sociedade humana. Esta oposição aparecerá com maior clareza ainda nas seguintes considerações.
Sobre a autoridade, a liberdade e a obediência
20. O Sillon coloca a autoridade pública primordialmente no povo, do qual deriva em seguida aos governantes, de tal modo, entretanto, que continua a residir nele. Ora, Leão XIII condenou formalmente esta doutrina em sua encíclica Diuturnum Illud (DP 12) sobre o Principado Político, onde diz: “Grande número de modernos seguindo as pegadas daqueles que, no século passado, se deram o nome de filósofos, declaram que todo o poder vem do povo; que em conseqüência aqueles que exercem o poder na sociedade não a exercem como sua própria autoridade, mas como uma autoridade a eles delegada pelo povo e sob a condição de poder ser revogada pela vontade do povo, de quem eles a têm. Inteiramente contrário é o pensamento dos católicos, que fazem derivar de Deus o direito de mandar, como de seu princípio natural e necessário”. Sem dúvida, o Sillon faz descer de Deus esta autoridade, que coloca em primeiro lugar no povo, mas de tal forma que “sobe de baixo para ir ao alto, enquanto na organização da Igreja, o poder desce do alto para ir até em baixo” (Marc Sangnier, discurso de Rouen, 1907). Mas, além de ser anormal que a delegação suba, pois é próprio à sua natureza descer, Leão XIII refutou de antemão esta tentativa de conciliação entre a doutrina católica e o erro do filosofismo. Pois prossegue: “É necessário observá-lo daqui: aqueles que presidem ao governo da coisa pública podem bem, em certos casos, ser eleitos pela vontade e o julgamento da multidão, sem repugnância nem oposição com a doutrina católica. Mas, se esta escolha designa o governante, não lhe confere a autoridade de governar, não lhe delega o poder, apenas designa a pessoa que dele será investido”.
21. De resto, se o povo continua a ser o detentor do poder, que vem a ser da autoridade? Uma sombra, um mito; não há mais lei propriamente dita, não há mais obediência. O Sillon o reconheceu; desde que, com efeito, reclama, em nome da dignidade humana, a tríplice emancipação política, econômica e intelectual, a cidade futura, para a qual trabalha, não mais terá mestres nem servidores; os cidadãos aí serão todos livres, todos camaradas, todos reis. Uma ordem, um preceito, seria um atentado à liberdade; a subordinação a uma qualquer superioridade seria uma diminuição do homem, a obediência, uma degradação. É assim, Veneráveis Irmãos, que a doutrina tradicional da Igreja nos representa as relações sociais, mesmo na cidade mais perfeita possível? Não é verdade que toda sociedade de criaturas dependentes e desiguais por natureza tem necessidade de uma autoridade que dirija sua atividade para o bem comum e imponha sua lei? E se, na sociedade, se encontram seres perversos (e sempre os haverá), a autoridade não deverá ser tanto mais forte quanto o egoísmo dos maus for mais ameaçador? Além disso, pode-se dizer, com uma aparência de razão sequer, que haja incompatibilidade entre a autoridade e a liberdade, sem que se cometa um erro grosseiro sobre o conceito da liberdade? Pode-se ensinar que a obediência é contrária à dignidade humana e o ideal seria substituí-la pela “autoridade consentida”? Será que o apóstolo S. Paulo não tinha em vista a sociedade humana, em todas as suas etapas possíveis, quando prescrevia aos fiéis a submissão a toda autoridade? Será verdade que a obediência aos homens, enquanto representantes legítimos de Deus, quer dizer afinal de contas a obediência a Deus, rebaixa o homem e o avilta abaixo de si mesmo? Será que o estado religioso, fundado sobre a obediência, é contrário ao ideal da natureza humana? Será que os santos, que foram os mais obedientes dos homens, foram escravos e degenerados? Enfim, poder-se-ia imaginar um estado em que Jesus Cristo, de novo sobre a terra, não mais desse o exemplo de obediência e não mais dissesse: Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus?
Sobre a justiça e a igualdade
22. O Sillon, que ensina semelhantes doutrinas e as põe em prática em sua vida interna, semeia portanto entre a vossa juventude católica noções erradas e funestas sobre a autoridade, a liberdade e a obediência. Outra coisa não acontece quanto à justiça e à igualdade. Trabalha, como afirma, para realizar uma era de melhor justiça. Assim, para ele, toda desigualdade de condição é uma injustiça ou, pelo menos, uma justiça menor! Princípio soberanamente contrário à natureza das coisas, gerador de inveja e de injustiça, subversivo de toda a ordem social. Assim, só na democracia inaugurará o reino da perfeita justiça! Não é isto uma injúria às outras formas de governo que são rebaixadas, por este modo, à categoria de governos impotentes, apenas toleráveis! De resto o Sillon, ainda sobre este ponto, vai de encontro ao ensinamento de Leão XIII. Poderia Ter lido na Encíclica já citada sobre o Principado Político que, “salvaguardada a justiça, aos povos não é interdito escolher o governo que melhor responda a seu caráter ou às instituições e costumes que receberam dos antepassados”, e a Encíclica faz alusão à tríplice forma de governo bem conhecida. Supõe, portanto, que a justiça é comparável com cada uma delas. E a Encíclica sobre a condição dos operários não afirma claramente a possibilidade de restaurar-se a justiça nas organizações atuais da sociedade, pois que indica os meios para isso? Ora, sem dúvida alguma, Leão XIII queria falar não de uma justiça qualquer, mas da justiça perfeita. Ensinando, pois, que a justiça é compatível com as três formas de governo em questão, ensinava que, sob este aspecto, a Democracia não goza de um privilégio especial. Os “sillonistas”, que pretendem o contrário, ou recusam ouvir a Igreja ou têm da justiça e da igualdade um conceito que não é católico.
Sobre a fraternidade
23. O mesmo acontece com a noção da fraternidade, cuja base colocam no amor dos interesses comuns, ou, além de todas as filosofias e de todas as religiões, na simples noção de humanidade, englobando assim no mesmo amor e numa igual tolerância todos os homens com todas as suas misérias, tanto as intelectuais e morais como as físicas e temporais. Ora, a doutrina católica nos ensina que o primeiro dever da caridade não está na tolerância das convicções errôneas, por sinceras que sejam , nem da indiferença teórica e prática pelo erro ou o vício, em que vemos mergulhados nossos irmãos, mas no zelo pela sua restauração intelectual e moral, não menos que por seu bem-estar material. Esta mesma doutrina católica nos ensina também que a fonte do amor do próximo se acha no amor de Deus, Pai comum e fim comum de toda a família humana, no amor de Jesus Cristo, do qual somos membros a tal ponto que consolar um infeliz é fazer o bem ao próprio Jesus Cristo. Qualquer outro amor é ilusão ou sentimento estéril e passageiro. Certamente, a experiência humana aí está, nas sociedades pagãs iy leigas de todos os tempos, para provar que, em certos momentos, a consideração dos interesses comuns ou da semelhança de natureza pesa muito pouco diante das paixões e concupiscências do coração. Não, Veneráveis Irmãos, não existe verdadeira fraternidade fora da caridade cristã, que, pelo amor de Deus e de seu Filho Jesus Cristo nosso Salvador, abrange todos os homens, para consolar todos, e para os conduzir todos à mesma fé e à mesma felicidade do céu. Separando a fraternidade da caridade cristã assim entendida, a democracia, longe de ser um progresso, constituiria um desastroso recuo para a civilização. Porque, se se chegar, e Nós o desejamos de toda a nossa alma, à maior soma possível de bem-estar para a sociedade e para cada um de seus membros pela fraternidade, ou, como se diz ainda, pela soliedaridade universal, é necessária a união dos espíritos na verdade, a união das vontades na moral, a união dos corações no amor de Deus e de seu filho Jesus Cristo. Ora, esta união só poderá ser realizada pela caridade católica, que é a única, por conseqüência, que pode conduzir os povos no caminho do progresso, para o ideal da civilização.
Sobre a dignidade humana
24. Enfim, na base de todas as falsificações das noções sociais fundamentais, o Sillon coloca uma falsa idéia da dignidade humana. Segundo ele, o homem só será verdadeiramente homem, digno desse nome, no dia em que adquirir uma consciência esclarecida, forte, independente, autônoma, podendo dispensar os mestres, só obedecendo a si própria, e capaz de assumir e desempenhar, sem falhas, as mais graves responsabilidades. Eis algumas destas grandes palavras com as quais se exalta o sentimento do orgulho humano; tal como um sonho, que arrasta o homem, sem luz, sem guia e sem auxílio, pelo caminho da ilusão, em que, esperando o grande dia da plena consciência, será devorado pelo erro e pelas paixões. E este grande dia, quando virá? A menos que se mude a natureza humana (o que não está no poder do Sillon), virá ele alguma vez? Será que os santos, que levaram ao apogeu a dignidade humana, tiveram esta dignidade? E os humildes da terra, que não podem subir tão alto e se contentam com traçar modestamente seu sulco (tracer modestement son sillon) na classe social que lhes designou a Providência, cumprindo energicamente seus deveres na humildade, na obediência e na paciência cristãs, não seriam eles dignos do nome de homens, aos quais o Senhor há de tirar um dia de sua condição obscura para colocar no céu, entre os príncipes de seu povo?
Suspendemos aqui nossas reflexões sobre os erros do Sillon. Não pretendemos esgotar o assunto, pois que ainda poderíamos chamar vossa atenção sobre outros pontos igualmente falsos e perigosos, por exemplo, sobre a maneira de compreender o poder coercitivo da Igreja. Importa, contudo, examinar agora a influência destes erros sobre a conduta prática do Sillon e sobre a sua ação social.
A estrutura igualitária da organização do “Sillon”
25. As doutrinas do Sillon não ficam apenas nos domínios da abstração filosófica. Elas são ensinadas à juventude católica, e, bem mais do que isso, procurasse vivê-las. O Sillon se considera como o núcleo da cidade futura; reflete-a, pois, tão fielmente quanto possível. Com efeito, não existe hierarquia no Sillon. A elite que o dirige separa-se da massa por seleção, quer dizer, impondo-se por sua autoridade moral e por suas virtudes. Nele se entra livremente, como livremente dele se sai. Os estudos aí se fazem sem mestre, quando muito com um conselheiro. Os círculos de estudos são verdadeiras cooperativas intelectuais, onde cada um é ao mesmo tempo aluno e mestre. A camaradagem mais absoluta reina entre os membros, e põe em total contato suas almas: daí a alma comum do Sillon. Definiram-na “uma amizade”. Mesmo o padre, quando nele ingressa, abaixa a eminente dignidade de seu sacerdócio e, pela mais estranha inversão de papéis, se faz aluno, se põe no nível de seus jovens amigos e não é mais do que um camarada.
O espírito anárquico que incute
26. Nestes hábitos democráticos, e nas doutrinas sobre a cidade ideal que os inspiram, reconhecereis, Veneráveis Irmãos, a causa secreta das faltas disciplinares que, tantas vezes, tiverdes de recriminar ao Sillon. Não é de espantar que não tenhais encontrado nos chefes e nos seus companheiros assim formados, fossem seminaristas ou padres, o respeito, a docilidade e a obediência que são devidos às vossas pessoas e à vossa autoridade; que tenhais experimentado da parte deles uma surda oposição, e que tenhais tido o pesar de os ver subtrair-se totalmente, ou, quando a isto forçados pela obediência, entregar-se com desgosto às obras não sillonistas. Vós sois o passado, eles são os pioneiros da civilização futura. Vós representais a hierarquia, as desigualdades sociais, a autoridade e a obediência: instituições envelhecidas, ante as quais suas almas, embevecidas por um outro ideal, não mais se podem dobrar. Temos sobre este estado de espírito o testemunho de fatos dolorosos, capazes de arrancar lágrimas, e não podemos, apesar de nossa longanimidade, reprimir um justo sentimento de indignação. Pois há quem inspire à vossa juventude católica a desconfiança para com a Igreja sua mãe; ensina-se-lhe que, decorridos 19 séculos, ela ainda não conseguiu no mundo constituir a sociedade sobre suas verdadeiras bases; que ela não compreendeu as noções sociais da autoridade, da liberdade, da igualdade, da fraternidade e da dignidade humana; que os grandes bispos e os grandes monarcas, que criaram e tão gloriosamente governaram a França, não souberam dar ao seu povo nem a verdadeira justiça, nem a verdadeira felicidade, porque eles não tinham o ideal do Sillon!
O sopro da Revolução passou por aí, e podemos concluir que, se as doutrinas sociais do Sillon são erradas, seu espírito é perigoso e sua educação funesta.
O “Sillon” é de uma intolerância odiosa
27. Mas então, que devemos pensar de sua ação na Igreja, se seu catolicismo é tão melindroso que, por mais um pouco, quem não abraçasse a sua causa seria a seus olhos um inimigo interior do catolicismo, e nada teria compreendido do Evangelho e de Jesus Cristo? Julgamos conveniente insistir sobre esta questão, porque foi precisamente seu ardor católico que valeu ao Sillon, até estes últimos tempos, preciosos encorajamentos e ilustres sufrágios. Pois bem! Perante as palavras e os fatos, somos obrigados a dizer que, em sua ação como em sua doutrina, o Sillon não dá satisfação à Igreja.
28. Em primeiro lugar, seu catolicismo só se acomoda com a forma democrática de governo, que julga ser a mais favorável à Igreja, e como que se confundindo com ela; portanto, entenda sua religião a um partido político, Não precisamos demonstrar que o advento da democracia universal não tem importância para a ação da Igreja no mundo; já temos lembrado que a Igreja sempre deixou às nações o cuidado de se dar o governo que consideram mais vantajoso para seus interesses. O que Nós queremos afirmar ainda uma vez após nosso predecessor, é que há erro e perigo em enfeudar, por princípio, o catolicismo a uma forma de governo; erro e perigo que são tanto maiores quando se sintetiza a religião com um gênero de democracia cujas doutrinas são erradas. Ora, é o caso do Sillon, o qual, de fato, e em favor de uma forma política especial, comprometendo a Igreja, divide os católicos, arranca a juventude e mesmo padres e seminaristas à ação simplesmente católica, e esbanja, em pura perda, as forças vivas de uma parte da nação.
Exceto quando se trata dos princípios da Igreja.
29. E reparai, Veneráveis Irmãos, numa estranha contradição. É precisamente porque a religião deve dominar todos os partidos, é invocando este princípio que o Sillon se abstém de defender a Igreja atacada. Certamente não foi a Igreja que desceu à arena política; arrastaram-na para aí, e para a mutilar, e para a despojar. O dever de todo o católico não consiste, então, em usar das armas políticas, que tem à mão, para defendê-la e também para forçar a política a ficar em seu domínio e a não se ocupar da Igreja, a não ser para lhe dar o que é devido? Pois bem! Em face da Igreja assim violentada, muitas vezes se tem a dor de ver os sillonistas cruzar os braços, a não ser que eles achem vantajoso defendê-la; vemo-los ditar ou sustentar um programa que em nenhum lugar nem no menor grau revela o espírito católico. O que não impede que estes mesmos homens, em plena luta política, sob o golpe de uma provocação, façam pública ostentação de sua fé. Isto que quer dizer senão que há dois homens nos sillonistas: o indivíduo que é católico; o sillonista, homem de ação, que é neutro.
30. Houve um tempo em que o Sillon, como tal, era formalmente católico. Em matéria de força moral, só conhecia uma, a força católica, e ia proclamando que a democracia havia de ser católica, ou não seria democracia. Em dado momento, entretanto, mudou de parecer. Deixou a cada um em sua religião ou sua filosofia. Ele próprio deixou de se qualificar de “católico”, e a fórmula “A democracia há de ser católica” substitui-a por esta “A democracia não há de ser anticatólica”, tanto quanto, aliás, antijudaica ou antibudista. Foi a época do “maior Sillon”. Todos os operários de todas as religiões e de todas as seitas foram convocados para a construção da cidade futura. Outra coisa não se lhes pediu a não ser que abraçassem o mesmo ideal social, que respeitassem todas as crenças e que trouxessem um saldo das forças morais. Certamente, proclamava-se, “os chefes do Sillon põem sua fé religiosa acima de tudo. Mas podem recusar aos outros o direito de hauri-la na fé católica. Pedem, pois, a todos aqueles que querem transformar a sociedade presente no sentido da democracia, que não se repilam mutuamente por causa de convicções filosóficas ou religiosas que os possam separar mas que marchem de mãos dadas, não renunciando a suas convicções, mas experimentando fazer, sobre o terreno das realidades práticas, a prova da excelência de suas convicções pessoais. Talvez que neste terreno de emulação entre almas ligadas a diferentes convicções religiosas ou filosóficas a união se possa realizar” (Marc Sangnier, Discurso de Rouen, 1907). E ao mesmo tempo se declarou (de que modo isto se poderia realizar?) que o pequeno Sillon católico seria a alma do grande Sillon cosmopolita.
31. Recentemente, desapareceu o nome do grande “maior Sillon”, e houve a intervenção de uma nova organização que em nada modificou, bem pelo contrário, o espírito e o fundo das coisas “para por ordem no trabalho, e organizar as diversas formas de atividade. O Sillon continua sempre a ser uma alma, um espírito, que se misturará aos grupos e inspirará sua atividade”. E a todos os novos agrupamentos, tornados autônomos na aparência: católicos, protestantes, livres-pensadores, se pede que se ponham a trabalhar. “Os camaradas católicos se esforçarão entre si próprios, numa organização especial, por se instruir e se educar. Os democratas protestantes e livres-pensadores farão o mesmo de seu lado. Todos, católicos, protestantes e livres-pensadores terão em mira armar a juventude não para uma luta fratricida, mas para uma generosa emulação no terreno das virtudes sociais e cívicas” (Marc Sangnier, Paris, Maio de 1910).
32. Estas declarações e esta nova organização da ação sillonista provocam bem graves reflexões. Eis uma associação interconfessional, fundada por católicos, para trabalhar na reforma da civilização moral sem a verdadeira religião: é uma verdade demonstrada, é um fato histórico. E os novos sillonistas não poderão pretextar que só trabalharão “no terreno das realidades práticas” onde a diversidade das crenças não importa. Seu chefe tão bem percebe esta influência das convicções do espírito sobre o resultado da ação, que os convida, qualquer que seja a religião a que pertençam, a “fazer no terreno das realidades práticas a prova da excelência de suas convicções pessoais”. E com razão, porque as realizações práticas revestem o caráter das convicções religiosas, como os membros de um corpo, até as últimas extremidades, recebem sua forma do princípio vital que o anima.
33. Isto posto, que se deve pensar da promiscuidade em que se acharão agrupados os jovens católicos com heterodoxos e incrédulos de todas as espécies, numa obra desta natureza? Esta não será mil vezes mais perigosa para eles do que uma associação neutra? Que se deve pensar deste apelo a todos os heterodoxos e a todos os incrédulos para virem provar a excelência de suas convicções no terreno social, numa espécie de concurso apologético, como se este concurso já não durasse há 19 séculos, em condições menos perigosas para a fé dos fiéis e sempre favorável à Igreja Católica? Que se deve pensar deste respeito a todos os erros e deste estranho convite, feito por um católico a todos os dissidentes, fortificarem suas convicções pelo estudo e delas fazer as fontes sempre mais abundantes de novas forças? Que se deve pensar de uma associação em que todas as religiões, e mesmo o livre-pensamento, podem manifestar-se altamente à vontade? Porque os sillonistas que, nas conferências públicas e em outras ocasiões proclamam altivamente sua fé individual, não pretendem certamente fechar a boca aos outros e impedir que o protestante afirme seu protestantismo e o cético, seu ceticismo. Que pensar, enfim, de um católico que, ao entrar em seu círculo de estudos, deixa na porta seu catolicismo, para não assustar seus camaradas que, “sonhando com uma ação social desinteressada, têm repugnância de a fazer servir ao triunfo de interesses, de facções, ou mesmo de convicções, quaisquer que sejam”? Tal é a profissão de fé na nova Comissão Democrática de Ação Social, que herdou a maior tarefa da antiga organização, e que, assim afirma, “desfazendo o equívoco em torno do maior Sillon, tanto nos meios reacionários como nos meios anticlericais”, está aberta a todos os homens “respeitadores das forças morais e religiosas e convencidos de que nenhuma emancipação social verdadeira será possível sem o fermento de um generoso idealismo”.
34. Ah, sim! O equívoco está desfeito; a ação social do Sillon não é mais católica; o sillonista, como tal não trabalha para uma facção, e “a Igreja, ele o diz, não deveriam por nenhum título, ser a beneficiária das simpatias que sua ação possa suscitar”. Insinuação estranha, em verdade! Teme-se que a Igreja se aproveite, com objetivo egoísta e interesseiro, da ação social do Sillon, como se tudo o que aproveita à Igreja não aproveitasse à humanidade! Estranha inversão de idéias: a Igreja é que seria beneficiária da ação social, como se os maiores economistas já não houvessem reconhecido e demonstrado que a ação social é que, para ser real e fecunda, deve beneficiar-se da Igreja. Porém, mais estranhas ainda, ao mesmo tempo inquietantes e acabrunhadoras, são a audácia e a ligeireza de espírito de homens que se dizem católicos, e que sonham refundir a sociedade em tais condições, e estabelecer sobre a terra, por cima da Igreja Católica, “o reino da justiça e do amor”, com operários vindos de toda parte, de todas as religiões ou sem religião, com ou sem crenças, contando que se esqueçam do que os divide: suas convicções religiosas e filosóficas, e ponham em comum aquilo que os une: um generoso idealismo e forças morais adquiridas “onde possam”, Quando se pensa em tudo que foi preciso de forças, de ciência, de virtudes sobrenaturais para estabelecer a cidade cristã, e nos sofrimentos de milhões de mártires, e nas luzes dos Padres e Doutores da Igreja, e no devotamento de todos os heróis da caridade, e numa poderosa Hierarquia nascida no céu, e nas torrentes da graça divina, e tudo isto edificado, travado, compenetrado pela Vida e pelo Espírito de Jesus Cristo, a Sabedoria de Deus, o Verbo feito homem; quando se pensa, dizíamos, em tudo isto edificado, fica-se atemorizado ao ver novos apóstolos se encarniçarem por fazer melhor, através da atuação dum vago idealismo e de virtudes cívicas. Que é que sairá desta colaboração? Uma construção puramente verbal e quimérica, em que se verão coruscar promiscuamente, e numa confusão sedutora, as palavras liberdade, justiça, fraternidade e amor, igualdade e exaltação humana, e tudo baseado numa dignidade humana mal compreendida. Será uma agitação tumultuosa, estéril para o fim proposto, e que aproveitará aos agitadores de massas, menos utopistas. Sim, na realidade, pode-se dizer que o Sillon escolta o socialismo, o olhar fixo numa quimera.
35. Tememos que ainda haja pior. O resultado desta promiscuidade em trabalho, o beneficiário desta ação social cosmopolita só poderá ser uma democracia, que não será nem católica, nem protestante, nem judaica; uma religião (porque o sillonismo, os chefes o afirmaram, é uma religião) mais universal do que a Igreja Católica, reunindo todos os homens tornados enfim irmãos e camaradas “no reino de Deus”. – “Não se trabalha pela Igreja, trabalha-se pela humanidade”.
E por isto o “Sillon” deixou de ser católico
36. E agora, penetrado da mais viva tristeza, perguntamo-Nos, Veneráveis Irmãos, onde foi parar o catolicismo do Sillon. Ah! Ele, que dava outrora tão belas esperanças esta torrente límpida e impetuosa foi captada em sua marcha pelos inimigos modernos da Igreja, e agora já não é mais do que um miserável afluente do grande movimento de apostasia organizada, em todos os países, para o estabelecimento de uma Igreja universal que não terá nem dogmas, nem hierarquia, nem regra para o espírito, nem freio para as paixões, e que sob o pretexto de liberdade e de dignidade humana, restauraria no mundo, se pudesse triunfar, o reino legal da fraude e da violência, e a opressão dos fracos, daqueles que sofrem e que trabalham.
O “Sillon” e as tramas dos inimigos da Igreja
37. Conhecemos demasiado bem os sombrios laboratórios, em que se elaboram estas doutrinas deletérias, que não deveriam seduzir espíritos clarividentes. Os chefes do Sillon não souberam evitá-las: a exaltação de seus sentimentos, a cega bondade de seu coração, seu misticismo filosófico misturado com um tanto de iluminismo os impeliram para um novo Evangelho do Salvador, a tal ponto que ousam tratar Nosso Senhor Jesus Cristo com uma familiaridade soberanamente desrespeitosa, e que, sendo o seu ideal aparentado com o da Revolução, não temem fazer entre o Evangelho e a Revolução aproximações blasfematórias, que não têm a escusa de haverem escapado a alguma improvisação tumultuosa.
O “Sillon” dá uma idéia desfigurada do divino Redentor.
38. Queremos chamar vossa atenção, Veneráveis Irmãos, sobre esta deformação do Evangelho e do caráter sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Homem, praticada no Sillon e algures. Desde que se aborda a questão social, está na moda, em certos meios, afastar primeiro a divindade de Jesus Cristo, e depois só falar de sua soberana mansidão, de sua compaixão por todas as misérias humanas, de suas instantes exortações ao amor do próximo e fraternidade. Certamente, Jesus nos amou com um amor imenso, infinito, e veio à terra sofrer e morrer, a fim de que, reunidos em redor dele na justiça e no amor, animados dos mesmos sentimentos de mútua caridade, todos os homens vivam na paz e na felicidade. Mas para a realização desta felicidade temporal e eterna, Ele impôs, com autoridade soberana, a condição de se fazer parte de seu rebanho, de se aceitar sua doutrina, de se praticar a virtude e de se deixar ensinar e guiar por Pedro e seus sucessores. Ademais se Jesus foi bom para os transviados e os pecadores, não respeitou suas convicções errôneas por sinceras que parecessem; amou-os a todos para os instruir, converter e salvar. Se chamou junto de si, para os consolar, os aflitos e os sofredores, não foi para lhes pregar o anseio de uma igualdade quimérica. Se levantou os humildes, não foi para lhes inspirar o sentimento de uma dignidade independente e rebelde à obediência. Se seu coração transbordava de mansidão pelas almas de boa vontade, soube igualmente armar-se de uma santa indignação contra os miseráveis que escandalizam os pequenos, contra as autoridades que acabrunham o povo sob a carga de pesados fardos, sem aliviá-la sequer com o dedo. Foi tão forte quão doce; repreendeu, ameaçou, castigou, sabendo e nos ensinando que, muitas vezes, o temor é o começo da sabedoria, e que, às vezes, convém cortar um membro para salvar o corpo. Enfim, não anunciou para a sociedade futura o reinado de uma felicidade ideal, de onde o sofrimento fosse banido; mas, por lições e exemplos, traçou o caminho da felicidade possível na terra e da felicidade perfeita no céu: a estrada real da cruz. Estes são ensinamentos eminentemente sociais, e nos mostram em Nosso Senhor Jesus Cristo outra coisa que não um humanitarismo sem consciência e sem autoridade.
Exortação ao Episcopado
39. No que se refere a vós, Veneráveis Irmãos, continuai ativamente a obra do Salvador dos homens pela imitação de sua doçura e de sua força. Inclinai-vos para todas as misérias; que nenhuma dor escape à vossa solicitude pastoral; que nenhum gemido vos encontre indiferentes. Mas, também, pregai ousadamente os deveres aos grandes e aos pequenos; a vós compete formar a consciência do povo e dos poderes públicos. A questão social está bem perto de ser resolvida quando uns e outros, menos exigentes a respeito de seus direitos recíprocos, cumprirem mais exatamente seus deveres. Além disso, como no conflito dos interesses, e principalmente na luta com as forças pouco honestas, a virtude de um homem, e mesmo sua santidade, não é sempre suficiente para lhe assegurar o pão cotidiano, e como as engrenagens sociais deveriam estar organizadas de tal forma que, por seu jogo natural, paralisassem os esforços dos maus e tornassem acessível a toda boa vontade sua parte legítima de felicidade temporal, desejamos vivamente que tomeis uma parte ativa na organização da sociedade, neste sentido. E, para isto, enquanto vossos padres se entregarem com ardor ao trabalho da santificação das almas, da defesa da Igreja, e às obras de caridade propriamente ditas, escolhereis alguns dentre eles, ativos e de espírito ponderado, munidos dos graus de doutor em filosofia e teologia, e dominando perfeitamente a história da civilização antiga e moderna, e os aplicareis aos estudos menos elevados e mais práticos da ciência social, para, no tempo oportuno, colocá-los à testa de vossas obras de ação católica. Contudo, que estes padres não se deixem transviar no dédalo das opiniões contemporâneas, pela miragem de uma falsa democracia; que não emprestem à retórica dos piores inimigos da Igreja e do povo uma linguagem enfática, cheia de promessas tão sonoras quanto irrealizáveis. Estejam eles persuadidos de que a questão social e a ciência social não nasceram ontem; que, de todos os tempos, a Igreja e o Estado, em feliz acordo, suscitaram para isto organizações fecundas; que a Igreja, que jamais traiu a felicidade do povo em alianças comprometedoras, não precisa livrar-se do passado, bastando-lhe retomar, com o auxílio de verdadeiros operários da restauração social, os organismos quebrados pela Revolução, adaptando-os, com o mesmo espírito cristão que os inspirou, ao novo ambiente criado pela evolução material da sociedade contemporânea; porque os verdadeiros amigos do povo não são revolucionários, nem inovadores, mas tradicionalistas.
Os membros do “Sillon” devem submeter-se
40. A esta obra, eminentemente digna de vosso zelo pastoral, desejamos que, longe de a embaraçar, a juventude do Sillon, purificada de seus erros, traga, na ordem e na submissão convenientes, um concurso leal e eficaz.
41. Voltando-nos, pois, para os chefes do Sillon, com a confiança de um pai que fala a seus filhos, pedimo-lhes para o seu bem, para o bem da Igreja e da França, vos cedam o lugar. Medimos, certamente, a extensão do sacrifício que lhes solicitamos, mas os sabemos assaz generosos para o realizar, e, antecipadamente, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, de quem somos o indigno representante, os abençoamos . Quanto aos membros do Sillon, queremos que se agrupem por dioceses para trabalhar, sob a direção de seus bispos respectivos, pela regeneração cristã e católica do povo, ao mesmo tempo pela melhoria de sua sorte. Estes grupos diocesanos serão, por ora, independentes uns dos outros; e, a fim de tornar bem claro que romperam com os erros do passado, tomarão o nome de Sillons Católicos, e cada um de seus membros acrescentará a seu título de sillonista o mesmo qualificativo de católico. Não será preciso dizer que todo sillonista católico ficará livre, aliás, de guardar suas preferências políticas, depuradas de tudo o que não esteja inteiramente conforme, nesta matéria, com a doutrina da Igreja. E assim, Veneráveis Irmãos, se houver grupos que se recusem a submeter-se a estas condições, devereis considerá-los por isso mesmo como se recusassem a submeter-se à vossa direção; e, então, dever-se-á examinar se eles se confinam na política ou na economia pura, ou se perseveram nos antigos erros. No primeiro caso, está claro que já não vos devereis ocupar mais deles do que do comum dos fiéis; no segundo, devereis agir em conseqüência, com prudência mas com firmeza. Os padres deverão manter-se totalmente alheios aos grupos dissidentes e se contentarão com prestar o socorro do santo ministério individualmente a seus membros, aplicando-lhes, no tribunal da Penitência, as regras comuns de moral relativamente à doutrina e à conduta. Quanto aos grupos católicos, os padres e os seminaristas, sempre favorecendo-os e os secundando, abster-se-ão de se inscreverem como membros, porque é conveniente que a milícia sacerdotal fique acima das associações leigas, mesmo as mais úteis e animadas do melhor espírito.
42. Tais são as medidas práticas pelas quais julgamos necessário sancionar esta carta sobre o Sillon e os sillonistas.Que o Senhor haja por bem, nós o rogamos no fundo da alma, fazer com que estes homens e estes jovens compreendam as graves razões que a ditaram, e lhes dê a docilidade de coração, com a coragem de provar, em face da Igreja, a sinceridade de seu fervor católico; e a vós, Veneráveis Irmãos, que vos inspire para com eles, pois que eles são doravante vossos, os sentimentos de uma afeição toda paternal.
É com esta esperança, e para obter estes resultados tão desejáveis, que vos concedemos, de todo o coração, assim como a vosso clero e a vosso povo, a Benção Apostólica.
Dado em Roma, junto a S. Pedro, em 25 de Agosto de 1910, oitavo ano de Nosso Pontificado.
Bula “Unam Sanctam”, de Bonifácio VIII
18.11.1302
Una, santa, católica e apostólica: esta é a Igreja que devemos crer e professar, já que é isso o que a ensina a fé. Nesta Igreja cremos com firmeza e com simplicidade testemunhamos. Fora dela não há salvação, nem remissão dos pecados, como declara o esposo no Cântico: “Uma só é minha pomba sem defeito. Uma só a preferida pela mãe que a gerou” (Ct 6,9). Ela representa o único corpo místico, cuja cabeça é Cristo, e Deus é a cabeça de Cristo. Nela existe “um só Senhor, uma só fé e um só batismo” (Ef 4,5). Com efeito, apenas uma foi a arca de Noé na época do dilúvio; ela foi a figura antecipada da única Igreja; encerrada com “um côvado” (Gn 6,16), teve um único piloto e um único chefe: Noé. Como lemos, tudo o que existia fora dela, sobre a terra, foi destruído.
A esta única Igreja, nós a veneramos, como diz o Senhor pelo profeta: “Salva minha vida da espada, meu único ser, da pata do cão” (Sl 21,21). Ao mesmo tempo que Ele pediu pela alma – ou seja, pela cabeça –, também pediu pelo corpo, porque chamou o seu corpo de único, isto é, a Igreja, por causa da unidade da Igreja no seu esposo, na fé, nos sacramentos e na caridade. Ela é a veste sem costura (Jo 19,23) do Salvador, que não foi dividida, mas tirada à sorte. Por isso, esta Igreja, una e única, tem um só corpo e uma só cabeça, e não duas como um monstro: é Cristo, e Pedro é vigário de Cristo, bem como os sucessores de Pedro, conforme o que disse o Senhor ao próprio Pedro: “Apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21,17). Disse “minhas” em geral e não “esta” ou “aquela” em particular, de forma que se subentende que todas lhe foram confiadas. Assim, se os gregos ou outros dizem que não foram confiados a Pedro e aos seus sucessores, é necessário que reconheçam que não fazem parte das ovelhas de Cristo, pois o Senhor disse no Evangelho de São João: “Há um só rebanho e um só Pastor” (Jo 10,16).
As palavras do Evangelho nos ensinam: este poder comporta dois gládios, ambos estão em poder da Igreja: o gládio espiritual e o gládio temporal. Mas este último deve ser usado para a Igreja, enquanto o primeiro deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do sacerdote; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do sacerdote. Um gládio deve estar subordinado ao outro gládio; a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual.
O poder espiritual deve superar em dignidade e nobreza toda espécie de poder terrestre. Devemos reconhecer isso porque muito nitidamente percebemos que as coisas espirituais sobrepujam as temporais. A verdade o atesta: o poder espiritual pode estabelecer o poder terrestre e julgá-lo se este não for bom. Ora, se o poder terrestre se desvia, será julgado pelo poder espiritual. Se o poder espiritual inferior se desvia, será julgado pelo poder superior. Mas, se o poder superior se desvia, só Deus poderá julgá-lo e não o homem. Assim testemunha o apóstolo: “O homem espiritual julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado” (1Cor 2,15).
Esta autoridade, ainda que tenha sido dada a um homem e por ele seja exercida, não é humana, mas de Deus. Foi dada a Pedro pela boca de Deus e fundada para ele e seus sucessores n’Aquele que ele, a rocha, confessou, quando o Senhor disse a Pedro: “Tudo o que ligares…” (Mt 16,19). Assim, quem resiste a este poder estabelecido por Deus “resiste à ordem de Deus” (Rm 13,2), a menos que esteja imaginando dois princípios, como fez Manes, opinião que julgamos falsa e herética, já que, conforme Moisés, não é “nos princípios”, mas “no princípio” que “Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1).
Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao romano pontífice.
Dada no oitavo ano de nosso pontificado [18 de novembro de 1302].
“Aeterni Patris”, de Leão XIII
AETERNI PATRIS
SOBRE A RESTAURAÇÃO DA FILOSOFIA CRISTÃ
CONFORME A DOUTRINA DE SANTO TOMÁS DE AQUINO
CONFORME A DOUTRINA DE SANTO TOMÁS DE AQUINO
Encíclica
A TODOS OS PATRIARCAS, PRIMAZES,
ARCEBISPOS E BISPOS DE TODO O MUNDO CATÓLICO
EM AÇÃO E COMUNHÃO COM A SANTA SÉ APOSTÓLICA
Aos Nossos Veneráveis Irmãos, Patriarcas, Primazes, Arcebispos e Bispos de todo o mundo Católico, em graça e comunhão com a Santa, Sé Apostólica.
LEÃO XIII PAPA
Veneráveis Irmãos, saúde e Bênção Apostólica.
SUMARIO DA ENCÍCLICA
INTRODUÇAO (ns. 1-5)
1 – Natureza e função do Magistério da Igreja.
2 – O Magistério da Igreja atinge também a Filosofia e as Ciências.
3 – Finalidade da Encíclica: Natureza do estudo filosófico que respeite a Fé e as exigências das Ciências Humanas.
4 – A causa dos males modernos é a difusão das más idéias.
5 – A inteligência bem formada é a causa de numerosos benefícios.
I PARTE: RELACIONAMENTO ENTRE A RAZAO E A FÉ (ns. 6-17)
1 – Embora tenha o campo limitado, a Filosofia é o mais poderoso subsídio para a Fé.
2 – Para reconduzir a sociedade à ordem, a tradição patrística sempre recorreu ao uso da razão bem ordenada.
3 – Subsídios da Filosofia para a Fé: Aplaina os caminhos da Fé -Prova a existência de Deus – Fornece os critérios de credibilidade – Ordena a ciência teológica – Aprofunda os conhecimentos da Fé – Defende a Fé.
4 – Subsídios da Fé para a Filosofia: Prevalece a Fé – A Fé não destrói a Filosofia, mas respeita-lhe os princípios, O método e os argumentos – O mal da Filosofia sem a Fé: O racionalismo – Os bens provenientes da harmonia entre Fé e Filosofia.
II PARTE: A HARMONIA ENTRE RAZAO E FÉ VISTA ATRAVÉS DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA (ns. 18-20)
1 – Realizada pelos apologistas.
2 – Realizada pelos Padres da Igreja, Escritores Eclesiásticos e Doutores, máxime por S. Agostinho.
3 – Realizada pelos Escolásticos, máxime por S. Boaventura e S. Tomás.
III PARTE: S. TOMÁS FOI QUEM COM MAIOR PERFEIÇÃO UNIU RAZÃO E FÉ (ns. 21-27)
1 – Excelência e perfeição da doutrina de S. Tomás.
2 – Confirmação dessa excelência: Pelo seu valor intrínseco – Pelas Ordens Religiosas – Pelas Academias e Escolas – Pelos Papas – Pelos Concílios Ecumênicos – Pelos não católicos.
IV PARTE: EXIGÊNCIA DE RESTAURAÇAO DA FILOSOFIA NOS TEMPOS ATUAIS (ns. 28-32).
1 – Conseqüências funestas do abandono da Escolástica.
2 – Louváveis iniciativas para a restauração da Filosofia Tomista.
3 – O Papa deseja esta restauração pelos motivos seguintes: Defesa da Igreja contra os ataques que lhe fazem as más filosofias – Restauração da ordem social – Promoção das ciências.
CONCLUSÃO (ns. 33-35)
1 – Exortação solene no sentido da restauração da doutrina tomista.
2 – Bênção Apostólica.
INTRODUÇÃO
1 – O Filho Unigênito do Pai Eterno, que apareceu no mundo para trazer ao gênero humano a salvação e a luz da sabedoria divina, concedeu certamente ao mundo um grande e admirável benefício, quando, antes de subir ao céu, mandou aos Apóstolos que fossem e ensinassem todas as nações; e deixou a Igreja estabelecida por Ele como mestre comum e supremo dos povos (Mat. 28, 19). Pois que os homens, libertados pela verdade, na verdade se deviam conservar; nem seriam muitos duradouros os frutos das doutrinas celeste pelos quais o homem alcançara a salvação, se Cristo Nosso Senhor não tivesse estabelecido um magistério perpétuo para instruir os entendimentos na fé.
A Igreja, porém, já confiando nas promessas do seu divino autor, já imitando-lhe a caridade, de tal sorte cumpriu essas ordens, que sempre teve em vista, sempre desejou ardentemente ensinar as coisas da religião e combater perpetuamente os erros. A este fim visam os trabalhos esmerados de cada um dos bispos; a este fim, as leis e decretos dos Concílios, e especialmente a solicitude cotidiana dos Pontífices Romanos, os quais, como sucessores no primado de São Pedro, Príncipe dos Apóstolos, têm o direito e o dever de ensinar e confirmar seus irmãos na fé.
2 – Acontecendo, porém, como diz o Apóstolo, que, pela “filosofia e pelos discursos sedutores” (Col. 2,8) as almas dos fiéis costumam ser enganadas, e a sinceridade da fé ser corrompida nos homens, por isso os supremos pastores da Igreja julgaram sempre ser dever seu promover, quanto pudessem, a verdadeira ciência, e ao mesmo tempo providenciar com suma vigilância, para que todas as disciplinas humanas, especialmente a filosofia, da qual em grande parte depende o bom uso das outras ciências, fossem ensinadas em toda a parte segundo a norma da fé católica. Isso mesmo, em outras coisas já vos lembramos de passagem, Veneráveis Irmãos, quando pela primeira vez vos falamos por Cartas Encíclicas.
3 – Agora, porém, em razão da gravidade do assunto e da condição dos tempos, somos obrigados a falar-vos de novo a fim de estabelecermos o método dos estudos filosóficos, que, correspondendo ao bem da fé, seja acomodado à mesma dignidade das ciências humanas.
4 – Se alguém atender à malícia dos nossos tempos e pensar na razão das coisas que acontecem pública ou particularmente, concluirá certamente que a causa fecunda dos males, não só daqueles que nos oprimem, mas também daqueles que receamos, consiste nas más opiniões à cerca das coisas divinas e humanas, que, partindo primeiro das escolas dos filósofos, têm invadido todas as ordens da sociedade, acolhidas pelos aplausos de muitos. Porquanto, sendo próprio da natureza humana seguir, na prática, como guia a razão, se a inteligência peca em qualquer coisa, a vontade também cai facilmente. Acontece, então, que a malícia das opiniões, que têm sede na inteligência, influi nas ações humanas e as perverte. Pelo contrário, se for reto o pensar dos homens, e baseado em sólidos e verdadeiros princípios, nesse caso há de produzir muitos benefícios para felicidade social e individual.
5 – Certamente que não atribuímos à filosofia humana tão grande força e autoridade, que a julguemos capaz de expulsar e arrancar totalmente todos os erros: porque, assim como quando se estabeleceu a religião cristã, pela admirável da fé difundida “não por palavras persuasivas da sabedoria humana, mas pela demonstração de espírito e virtude” (Cor. 2,4), o mundo foi restituído à primitiva dignidade; assim agora se deve esperar, principalmente da onipotente virtude e auxílio de Deus que as almas dos homens, dissipadas as trevas dos erros, sigam melhor vida.
Não se devem desprezar nem desconsiderar, porém, os auxílios naturais, que por benefício da sabedoria divina, que tudo dispõe forte e suavemente, superabundam ao gênero humano: e entre esses auxílios é certo que o principal é o reto uso da filosofia. Pois que não foi em vão que Deus concedeu à alma humana a luz da razão. A luz da fé que depois lhe foi acrescida, longe de extinguir ou diminuir a força da inteligência, antes a aperfeiçoa e, aumentando-lhe as forças, a habilita para maiores coisas.
Pede, pois, a economia da mesma Providência Divina que, tratando-se de chamar os povos à fé e à Salvação, se aproveite à cooperação da ciência humana. Porque esse modo de proceder provado e sábio, fora seguido pelos preclaríssimos Padres da Igreja, está confirmando pelos monumentos da antiguidade. Eles, em verdade, atribuíram sempre à razão muita e não pequena importância, a qual resumiu suscintamente Santo Agostinho, atribuindo a esta ciência “aquilo por meio do que a fé salubérrima… é produzida, nutrida, defendida e robustecida” (De Trin. lib. XIV,l).
PRIMEIRA PARTE
RELACIONAMENTO ENTRE RAZAO E FÉ
6 – Em primeiro lugar, a filosofia sendo bem compreendida, pode em certo modo aplainar e fortificar o caminho para a verdadeira fé, e preparar convenientemente a inteligência dos seus discípulos para receberem a Revelação, visto que com razão é chamada pelos antigos umas vezes “instituição prévia para a religião cristã” (Clem. Alex., Strom. lib. I, 16), outras vezes “prelúdio e auxilio do cristianismo” (Orig. ad Greg. Thaum.), e também é chamada “pedagogo para o Evangelho” (Clem. Alex., Strom. I, 5).
Realmente Deus benigníssimo, no que diz respeito às coisas divinas, não só revelou com luz da fé aquelas verdades que a inteligência humana não pode atingir, mas também manifestou algumas que não são absolutamente inacessíveis à razão, para que, com a autoridade de Deus, logo fossem compreendidas por todos sem receio de errar. Donde resulta que os mesmos sábios pagãos, só com a luz da razão, conheceram, demonstraram e defenderam com apropriados argumentos certas verdade, que nos são propostas pela fé ou estão estritamente unidas com a doutrina da fé. “Pois as coisas d’Ele, que são invisíveis, se vêem depois da criação do mundo, considerando-as pelas obras que foram feitas, ainda a Sua virtude sempiterna e a Sua divindade” (Rom. 1,20); e os gentios que não “têm lei. ..mostram, todavia, a obra da lei escrita em seus corações” (Rom. 2,15). É muito conveniente que essas verdades, conhecidas mesmo pelos sábios pagãos, sejam convertidas em proveito e utilidade da doutrina revelada, a fim de se demonstrar que a sabedoria humana e os próprios testemunhos dos adversários prestam a homenagem à fé cristã.
7 – É coisa sabida que este modo de proceder não é novo, mas antigo, e muito usado pelos Santos Padres da Igreja. Além disso, essas veneráveis testemunhas e guardas das tradições religiosas reconhecem certa forma e, uma espécie de figura desse procedimento no fato dos hebreus, que, tendo de sair do Egito, receberam a ordem de levar consigo os vasos de prata e ouro, bem como os vestidos preciosos dos egípcios, para que essas coisas fossem dedicadas à verdadeira divindade, apesar de terem antes servido a ritos vergonhosos e cheios de superstição. Gregório de Neocesaréia (Orat. paneg. ad Origen.) louva Orígenes, por isso que, tendo este extraído com engenhosa habilidade muitas verdades dos pagãos, considerando-as como armas arrebatadas aos inimigos, serviu-se delas. Com singular engenho para defesa da sabedoria cristã e para refutação da superstição. Igualmente Gregório Nazianzeno (Vit. Moys). E Gregório Nisseno louva e aprovam o mesmo costume de disputar de Basílio Magno (Carm. I, Iamb. 3); porém São Jerônimo encarecidamente o recomenda em Quadrato, discípulo dos Apóstolos, em Aristides, em Justino, em Irineu, e em muitíssimos outros. (Epist. ad Magn.). E Agostinho diz: “Não vemos nós com quanto ouro e prata luxuosamente vestido, saiu do Egito Cipriano, doutor sua víssimo e felicíssimo mártir? E como saiu Lactâncio? E Vitorino, Optato e Hilário? E para não enumerar os vivos, como saíram inumeráveis gregos?” (De doctr. christ. I, II. 40).
Ora, se a razão natural produziu essa abundante colheita de doutrina, antes de ser fecundada pela virtude de Cristo, com certeza mais abundante colheita produzirá depois que a graça do Salvador restabeleceu e aumentou as faculdades naturais da alma humana. E quem não verá como por esse modo de filosofar se abre para a fé um caminho plano e fácil?
SUBSÍDIOS DA FILOSOFIA PARA A FÉ
8 – Porém não é nesses limites que se circunscreve a utilidade que provém desse modo de filosofar. Realmente, nas palavras da divina sabedoria se repreende asperamente a loucura desses homens que “por aquelas coisas que se viam serem bens, não puderam compreender Aquele que é; e que, não atendendo às obras, desconheceram quem era o artífice” (Sab. 13, 1).
9 – Portanto o grande e excelente fruto que em primeiro lugar colhemos da razão humana, é demonstrar que Deus existe: “porque pela grandeza da imagem e da criatura pode chegar-se sem dúvida ao Criador delas” (Sab. 5, 5). Depois mostra-nos que em Deus se reúnem singularmente todas as perfeições, sobressaindo sua infinita sabedoria, à qual nada pode, ocultar-se, e sua suprema justiça, que de nenhum mal afeto pode ser eivada, e que por isso Deus não só é verdadeiro, mas é a própria verdade que não pode enganar-se, nem enganar-nos. Donde evidentemente se deduz, que a razão humana presta à palavra de Deus pleníssima fé e autoridade.
10 – Semelhantemente a razão declara que a doutrina evangélica, logo desde a sua origem resplandecera com admiráveis milagres, como argumentos certos da verdade certa, e que por isso, todos aqueles que acreditam no Evangelho não acreditam temerariamente, como quem segue engenhosas fábulas (2 Ped. 1, 16); mas sujeitam sua inteligência e juízo à autoridade divina por uma submissão inteiramente racional. O que, porém, não é de menos valor, é que a razão prova claramente que a Igreja instituída por Cristo (como definiu o Concílio Vaticano) “por causa da sua admirável propagação, exímia santidade e, inexaurível fecundidade em toda a parte, por causa da unidade católica e firmeza invencível, é um grande e perpétuo motivo de credibilidade, e um testemunho irrefragável da sua divina missão” (Const. Dog. de Fid Cath. 3) .
11 – Lançados destarte, os firmíssimos alicerces, ainda se requer um continuado e múltiplo uso da filosofia para que a sagrada teologia admita e receba a natureza, hábito e engenho da verdadeira ciência. Porque nessa nobilíssima disciplina é grandemente necessário que muitas e diversas partes das doutrinas celestes se reúnam em um corpo, a fim de que, convenientemente dispostas, cada qual em seu lugar, e derivadas de princípios próprios, permaneçam estritamente unidas entre si; e, enfim, que todas e cada uma delas sejam confirmadas com argumentos próprios e irrefutáveis.
12 – Não devemos também passar em silêncio, nem ter em pouco aquele conhecimento mais esmerado e mais fecundo das coisas que se crêm, bem como a inteligência, mais calara que ser possa, dos mesmos mistérios da fé, tão louvada e seguida por Agostinho e outros Padres, e que o mesmo Concílio Vaticano definiu que era frutuosíssima. Este conhecimento e inteligência é, sem dúvida, mais plena e facilmente adquirido por aqueles que, à integridade da vida e ao estudo da fé, acrescentam um engenho exercitado nas disciplinas filosóficas, principalmente ensinando o mesmo Concílio Vaticano que a inteligência dos sagrados dogmas convém ser deduzida “ora da analogia das coisas que se conhecem naturalmente, ora da conexão dos mesmos mistérios entre si e com o fim último do homem” (Const. Dogm. de Fid. Cath. 20).
13 – Finalmente, pertence também à filosofia defender religiosamente as verdades divinamente reveladas e resistir aos que ousam opor-se-lhes. Para isto, de muito serve a filosofia, que é considerada como o baluarte da fé e firme defesa da religião. “A doutrina do Salvador, diz Clemente de Alexandria, é perfeita em si e não carece de ninguém, porque é virtude e sabedoria de Deus. A filosofia humana não faz mais poderosa a verdade; mas, enfraquecendo os argumentos dos sofistas contra ela e pulverizando os maliciosos estratagemas contra a verdade, com razão é chamada sebe e estacada da vinha “ (Strom. lib. 1, 20). Na verdade, assim como os inimigos do nome católico, para combater a religião, se servem de armas quase, sempre ex- traídas da razão filosófica, assim os defensores da divina ciência tiram do depósito da filosofia muitos argumentos para defenderem os dogmas da Revelação. Nem se pense que é mesquinho triunfo da fé cristã, por isso que a razão humana rebate vigorosa e facilmente as armas dos adversários, adquiridas com o auxílio da mesma razão, com o fim de fazer mal. São Jerônimo, escrevendo a Magno, diz que essa espécie de combate religioso fora adotado pelo mesmo Apóstolo das Gentes: “Paulo, guia do exército cristão, e, invencível orador, combatendo por cristo, aproveita com muita arte, para argumento da fé, uma inscrição casual; porque aprendera do verdadeiro Davi a arrancar as armas ao inimigo, e a decepar a cabeça do soberbíssimo Golias, com sua própria espada” (Epist. ad Magn.). Além disso, a mesma Igreja exorta e manda que os doutores cristãos se aproveitem desse auxílio da filosofia. O Concílio Lateranense V, tendo definido “que, toda a aversão contrária à fé revelada é absolutamente falsa, porque a verdade não pode estar em contradição com a verdade” (Bulla Apostolici Regiminis), manda os doutores da filosofia que tratem com empenho de refutar os argumentos falsos; pois que, como afirma Santo Agostinho “se a razão se opõe à autoridade das Escrituras Divinas, por muito especiosa que seja, engana-se com a semelhança da verdade, porque não pode ser verdadeira” (Epist. 143, 7).
SUBSÍDIOS DA FÉ PARA A FILOSOFIA
14 – Para que a filosofia, porém, produza os preciosos frutos que temos lembrado, é indispensável que jamais se afaste da senda, seguida pelos antigos Padres, e aprovada pelo Concílio Vaticano com solene autoridade. E assim, quando claramente conhecemos que, por motivos sobrenaturais, devemos receber quaisquer verdades, que são muito superiores à capacidade de qualquer engenho, a razão humana, conhecendo sua fraqueza, não ouse passar avante, nem negar essas verdades, nem compreendê-las, nem interpretá-las livremente; mas aceitando-as com absoluta e humilde fé, e considerando como grande honra ser lhe permitido seguir, à maneira de serva e criada, as doutrinas celestes, e por benefício de Deus atingi-las de algum modo.
15 – Naquelas doutrinas, porém, que a inteligência humana pode compreender naturalmente, é sem dúvida justo que, a filosofia empregue o seu método, seus princípios e argumentos. Não, porém, de modo que pareça ter a audácia de subtrair-se à autoridade divina. Pelo contrário, como é sabido que as coisas que a Revelação ensina se baseiam em verdades inconcussas, e que aquela que se opõe à fé repugnam igualmente com a reta razão, saiba o filósofo católico que violará os diretos da fé, não menos que os da razão, se adotar conclusões que conhece estarem em contradição com a doutrina revelada.
16 – Bem sabemos que não faltam homens que, exaltando demasiadamente as faculdades da natureza humana, asseveram que a nossa inteligência, logo que se sujeita à autoridade divina, desce da dignidade natural, e como que curvada debaixo do jugo da escravidão é de tal sorte sopeada e impedida, que não pode atingir o ápice da verdade e da perfeição. Essas palavras, porém, estão repletas de erro de dolo, e o fim a que visam é que os homens, com suma loucura e não sem crime de ingratidão, desprezem as verdades mais elevadas e respeitem espontaneamente o divino benefício da fé, da qual têm emanado ainda, sobre a sociedade civil, torrentes de todos os bens. Porque, estando o espírito humano encerrado dentro de certos e muito apertados limites, está sujeito a muitos erros e à ignorância de muitas coisas, pelo contrário, baseada na autoridade de Deus, a fé cristã é mestra seguríssima da verdade. Quem a segue, nem é envolvido pelo erro, nem agitado nas vagas de opiniões incertas.
17 – Por isso, os que harmonizam o estudo da filosofia com a obediência à fé cristã, raciocinam otimamente, até porque o esplendor das verdades divinas, recebido na alma, ajuda a mesma inteligência, e bem longe de ofendê-la em sua dignidade, lhe dá muita nobreza, penetração e firmeza. Quando, porém, aplicam a penetração do espírito a refutar a sentenças que repugnam à fé e a provar as coisas que com a fé se conformam, exercitam muito digna e utilmente a razão. Porque, nas primeiras, descobrem as causas do erro, e conhecem o defeito dos argumentos em que as mesmas se fundam. Nestas, porém, gozam da consideração das razões com que solidamente são demonstradas e podem ser persuadidas a qualquer homem prudente. Quem negar que com esse processo e exercício se aumentam as riquezas do entendimento, e se desenvolvem as suas faculdades, há de necessariamente cair no absurdo de afirmar que a distinção do verdadeiro e do falso não conduz de forma alguma ao adiantamento do engenho. Com razão, portanto o Concílio Vaticano lembra os grandes benefícios que a fé presta à razão nas seguintes palavras: “A fé livra e defende dos erros a razão, e a instrui com muitos ensinamentos” (Const. Dogm. de Fid. Cathol. 4). E por isso o homem, se fosse verdadeiramente sábio, não deveria culpar a fé como inimiga da razão e das verdades naturais, mas antes deveria dar graças a Deus e alegrar-se grandemente, porque, entre tantas causas da ignorância e no meio das vagas do erro, lhe apareceu rutilante, a santíssima luz da fé, a qual, como astro amigo, lhe mostra o porto da verdade, sem perigo algum de errar.
SEGUNDA PARTE
HARMONIA ENTRE RAZÃO E FÉ
CONSIDERADA NA HISTÓRIA DA FILOSOFIA
18 – Se atenderdes, Veneráveis Irmãos, à história da filosofia, sabereis que na realidade se provam todas as coisas que até aqui temos dito. Na verdade, ainda os mais sábios dos antigos filósofos, que careceram do benefício da fé, erraram muitíssimo e em muitas coisas. Porque, não ignorais que, entre algumas verdades, ensinaram muitas vezes coisas falsas e errôneas, muitas coisas incertas e duvidosas acerca da verdadeira noção da divindade, da primitiva origem das coisas, do governo do mundo, do conhecimento divino do futuro, da causa e princípio dos males, do último fim do homem, da eterna bem-aventurança, das virtudes e vícios: de outras doutrinas, cujo conhecimento verdadeiro exato é mais que tudo necessário ao gênero humano. Porém os primeiros Padres e Doutores da Igreja, que muito bem sabiam, pelo conselho da vontade divina, que o reparador da própria ciência humana era Cristo, que é “virtude e sabedoria de Deus” (I Cor. 1, 24), e “no qual estão encerrados todos os tesouros da sabedora e da cicia” (Col. 2, 3) empreenderam investigar os livros dos sábios antigos e confrontar as suas opiniões com as doutrinas reveladas; e por uma prudente escolha adotaram o que nelas parecia conforme com a verdade, emendando ou desprezando tudo o mais. Porque Deus providentíssimo, assim como suscitou para a defesa da Igreja, e contra a crueldade dos tiranos, mártires fortíssimos e cheios de magnanimidade, assim também opôs aos falsos filósofos e aos hereges homens extraordinários em sabedoria, que se valeram do tesouro da verdade, bem como do auxílio da razão humana.
Assim, desde os princípios da Igreja os opôs contra ferrenhos adversários, que zombando dos dogmas e costumes dos cristãos, estabeleciam que havia muitos deuses, que a matéria do mundo não tinha um princípio nem causa, que a ordem das coisas estava numa força cega e numa necessidade fatal, e que não era dirigida pela divina providência.
Ora, logo a princípio pelejaram, contra tais mestres dessa louca doutrina, homens sábios, a quem damos o nome de Apologistas que, guiando-se primeiro que tudo pela fé, também tomaram da sabedoria humana argumentos pelos quais assentaram que se devia prestar culto a um só Deus revestido de todas as perfeições; que todas as coisas foram produzidas do nada por um poder onipotente, que obram pela sua sabedoria, e que cada uma delas é dirigida e movida para seus fins próprios.
Merece, entre esses, o primeiro lugar, São Justino, mártir, que depois de ter freqüentado as celebérrimas Academias dos gregos, viu que só das doutrinas reveladas é que pôde extrair a verdade, como ele mesmo confessa, e abraçando-as com todo o ardor da sua alma, as purificou das calúnias, defendeu-as veementemente e, eloquentemente diante dos Imperadores Romanos, e com elas harmonizou grande número de opiniões dos filósofos gregos. Também Quadrato e Aristides, Hérmias e Atenágoras eminentemente brilharam por esse tempo. Também não menor glória adquiriu para si, na defesa da mesma causa, Irineu, mártir invicto, Pontífice, da Igreja Lugdemense: o qual tendo valorosamente refutado as perversas opiniões dos orientais, espalhadas pelos gnósticos pelos limites do império romano, “explicou as origens de cada uma das heresias (como afirma Jerônimo), e de que fontes filosóficas emanavam” (Epist. ad Magn.). Ninguém, porém, ignora as disputas de Clemente Alexandrino, as quais o próprio Jerônimo honrosamente celebra assim: “Que há nelas de ignorância? E mesmo que há aí que não provenha do seio mesmo da filosofia?” (Loc. cit.). O mesmo com uma variedade pasmosa escreveu muitas coisas utilíssimas para estabelecer a história da filosofia, para exercitar convenientemente a dialética, para conciliar a harmonia da razão com a fé. Segue-se-lhe Orígenes, insigne mestre da escola de Alexandria, muito instruído nas doutrinas gregas e orientais, que publicou muitos e magníficos volumes, utilíssimos para explanar as divinas Escrituras e esclarecer os dogmas sagrados. Ainda que esses livros, tais quais agora existem, não estão totalmente isentos de erros, contêm, todavia, grande cópia de sentenças que multiplicam e robustecem as verdades naturais. Aos hereges opõe Tertuliano a autoridade das Sagradas Escrituras; aos filósofos, mudando de armas, opõe-lhes a filosofia. A estes refuta, com tanta sutileza e erudição, que não teme lançar-lhe em rosto este desafio: “Não me podeis igualar em ciência nem em doutrina como julgais” (Apologet. § 46). Arnóbio, em seus livros publicados contra os gentios, e Lactâncio, principalmente em suas Instituições divinas, empregam igual eloquência e valor para persuadir aos homens os dogmas e preceitos da sabedoria católica; e longe de transtornar a filosofia, como costumam fazer os Acadêmicos, servem-se, para os convencer: (Inst. VII, 7) ora das suas armas, ora as que se deduzem das questões intestinas dos filófofos (De Opif. Dei, 21).
19 – Os escritos que, acerca da alma humana, dos atributos divinos e de outras questões de gravíssima consideração, deixaram o grande Atanásio e Crisóstomo, príncipe dos oradores, são tão excelentes que, na opinião comum, parece que nada se pode acrescentar à sua profundidade e abundância. E para não alongar demais esta lista de grandes talentos, ajuntaremos aos que temos mencionado Basílio Magno, bem como os dois Gregórios, os quais saíram de Atenas, domicílio de toda a humanidade, abundantemente instruídos em todos os recursos da filosofia; e estes tesouros de ciência que cada um deles adquiria, ardentemente os empregaram em refutar os hereges e em ensinar os cristãos.
Parece, porém, que a primazia pertence, entre todos a Santo Agostinho, poderoso gênio, que penetrou profundamente em todas as ciências divinas e humanas, armado de uma fé suma e igual doutrina, combatendo sem descanso todos os erros de seu tempo. Que ponto da filosofia não tocou e não aprofundou? Descrevendo aos fiéis os mais altos mistérios da fé, prevenindo-os sempre contra os agressivos ataques de seus adversários; pulverizando as ficções dos acadêmicos e dos Maniqueus, assentou e consolidou os fundamentos da ciência humana. Com que riqueza e penetração tratou dos anjos, da alma, da inteligência humana, a vontade e livre arbítrio, da religião, da vida futura, do tempo, da eternidade e até da mesma natureza dos corpos sujeitos a mudanças!
Mais tarde, no Oriente, João Damasceno, seguindo os passos de Gregório Nazianzeno, e no Ocidente, Boécio e Anselmo, seguindo os de Agostinho, enriqueceram grandemente o patrimônio da filosofia.
20 – Finalmente, os Doutores da Idade Média, conhecidos pelo nome de Escolásticos, empreendem a obra colossal de recolher com cuidado aqui e ali a abundante messe da doutrina disseminada nas inumeráveis obras dos Santos Padres reduzindo-as a uma só obra, para uso e comodidade das gerações futuras.
E agora, Veneráveis Irmãos, podemos repetir as palavras com que Sixto V, Nosso Predecessor, explica com extensão a origem, o caráter e a excelência da doutrina escolástica: “Pela divina munificência d’Aquele que é o único a dar o espírito de ciência, de sabedoria e, de, inteligência, e que no decurso dos séculos, e segundo as necessidades, não cessa de enriquecer a sua Igreja com novos benefícios, de provê-la de novas e seguras defesa, nossos antecessores, homens de profunda ciência, inventaram a teologia escolástica. Principalmente, porém, dois gloriosos doutores, o Angélico São Tomás e o Seráfico São Boaventura, ambos professores ilustres nesta faculdade, são os que, com seu incomparável talento, com seu assíduo zelo, com seus trabalhos e vigílias, cultivaram esta ciência, enriquecendo-a e transmitindo-a a seus descendentes, disposta em uma ordem perfeita e explicada de muitos modos. E certamente o conhecimento de uma ciência tão saudável que dimana do fecundíssimo manancial das Escrituras, dos Sumos Pontífices, dos Santos: Padres e dos Concílios, tem sido em todos os tempos de grande, vantagem para a Igreja, já para a boa inteligência e verdadeira interpretação das Escrituras, já para ler e explicar os Padres com mais segurança e utilidade, já para desmascarar os variados erros e as heresias. Nesses últimos tempos, porém, que nos têm trazido os dias profetizados pelo Apóstolo, em que os homens blasfemos, orgulhosos, sedutores, fazem progresso no mal, errando eles e induzindo os outros ao erro, certamente que, para confirmar os dogmas da fé católica e refutar as heresias, é mais que nunca necessária a ciência de que tratamos” (Bulla Triumphantis, 1588).
Essas palavras, ainda que parece que atingem somente a teologia escolástica, estendem-se, todavia, à própria filosofia. Com efeito, as eminentes qualidades que tornam a teologia escolástica tão temível aos inimigos da verdade, a saber, continua o mesmo Pontífice: “ Aquela coerência tão estreita e perfeita dos efeitos e das causas, aquela ordem e simetria semelhante às de um exército em campanha, aquelas luminosas definições e distinções, aquela solidez de argumentação e sutileza de controvérsia, coisas todas por meio das quais se separa a luz das trevas, se distingue o verdadeiro do falso e as mentiras da heresia, despojadas do prestígio e das ficções que as rodeiam, aparecem a descoberto”; todas essas brilhantes qualidades, dizemos, se devem unicamente ao bom uso da filosofia que os doutores escolásticos adotaram, geralmente ainda nas controvérsias teológicas.
Além disso, como o caráter próprio e distintivo dos teólogos escolásticos é unir com o mais estreito laço a ciência divina e humana, a teologia em que se distinguiram não poderia certamente ter adquirido tanta honra e estima na opinião dos homens, se esses doutores tivessem pregado uma filosofia incompleta, truncada e superficial.
TERCEIRA PARTE
SÃO TOMÁS DE AQUINO CONCILIOU
COM MÁXIMA PERFEIÇÃO RAZÃO E FÉ
21 – Porém, entre todos os doutores escolásticos, brilha, como astro fulgurante, e como príncipe e mestre de todos, Tomás de Aquino, o qual, como observa o Cardeal Caetano, “por ter venerado profundamente os santos doutores que o precederam, herdou, de certo modo, a inteligência de todos” (S. T. II II, 148, 4).
Tomás coligiu suas doutrinas, como membros dispersos de um mesmo corpo; reuniu-as, classificou-as com admirável ordem, e de tal modo as enriqueceu, que tem sido considerado, com muita razão, como o próprio defensor e a honra da Igreja.
De espírito dócil e penetrante, de fácil e segura memória, de perfeita pureza de costumes, levado unicamente pelo amor da verdade, prenhe de ciência divina e humana, justamente comparado com o sol, aqueceu a terra com a irradiação de suas virtudes e encheu-a com o resplendor de sua doutrina.
Não há um ponto da filosofia que não tratasse com tanta penetração como solidez. As leis do raciocínio, Deus e as substâncias incorpóreas, o homem e as outras criaturas sensíveis, os atos humanos e seus princípios, são objeto das teses que defende, nas quais nada falta, nem a abundante colheita de investigações, nem a harmoniosa coordenação das partes, nem o excelente método de proceder, nem a solidez dos princípios, nem a força dos argumentos, nem a lucidez de estilo, nem a propriedade da expressão, nem a profundidade e gentileza com que resolve pontos mais obscuros.
22 – Ainda mais: o Doutor Angélico buscou as conclusões filosóficas nas razões e princípios das coisas, que têm grandíssima extensão e encerram em seu seio o germe de quase infinitas verdades, para serem desenvolvidas em tempo oportuno e com abundantíssimo fruto pelos mestres dos tempos posteriores.
Empregando o mesmo procedimento na refutação dos erros, o santo Doutor chegou ao seguinte resultado: debelou todos os erros do tempo passado, e propiciou invencíveis armas para os que haviam de aparecer nos tempos futuros.
Além disso, ao mesmo tempo que distingue perfeitamente, como convém à fé e à razão, uni-as ambas pelos vínculos de mútua concórdia, conservando a cada uma seus direitos e salvando sua dignidade. Assim é que a razão, levada por Tomás até o píncaro humano, não pode elevar-se a maior altura. E a fé quase não pode esperar que a razão lhe preste mais numerosos e mais valentes argumentos do que aqueles que lhe forneceu Tomás de Aquino.
23 – Por isso, nos séculos passados, homens doutíssimos, de grande renome em teologia e filosofia, procurando com incrível empenho as obras de Tomás, se têm consagrado, não só a cultivar sua angélica sabedoria, mas também a imbuir-se inteiramente dela. É sabido que quase todos os fundadores e legisladores das Ordens Religiosas têm imposto a seus companheiros o estudo da doutrina de São Tomás e a cingirem-se a ela religiosamente, dispondo que a nenhum deles seja lícito separar-se impunimente, ainda em coisas pequenas, das pegadas deste grande homem. Para não falarmos da família de São Domingos, que se gloria do direito próprio de o ter por mestre, os Beneditinos, os Carmelitas, os Agostinianos, a Companhia de Jesus e muitas outras Ordens estão obrigadas a esta lei, como atestam os respectivos estatutos.
24 – E aqui se levanta jubilosamente o espírito a essas celebérrimas Academias e Escolas, que outrora floresceram na Europa, – de Paris, de Salamanca, de Alcalá, de Douai, de Tolosa, e Louvaina, de Pádua de Bolonha, de Nápoles, de Coimbra e outras muitas. Ninguém ignora que as consultas que se lhes faziam, nos mais importantes negócios, gozavam de grande autoridade em toda a parte. É também sabido que, naqueles grandes abrigos da sabedoria humana, Tomás reinava como um príncipe em seu próprio império, que todas as inteligências, as dos mestres e as dos discípulos, se curvavam com admirável consonância ao magistério e autoridade do Doutor Angélico.
25 – Mas, o que é mais, os Pontífices Romanos, Nossos Predecessores, têm honrado a sabedoria de Tomás de Aquino com singulares louvores e amplíssimas provas. Clemente VI, Nicolau V, Bento XIII e outros, atestam que a Igreja Universal é ilustrada pela sua admirável doutrina. São Pio V reconhece que a mesma doutrina, dissipando as heresias, as confunde e refuta, e que todos os dias livra o mundo de erros maléficos. Outros, como Clemente XII, afirmam que de seus escritos têm nascido abundantíssimos bens para a Igreja universal, e que devem ser honrados com o mesmo culto que é prestado aos maiores doutores da Igreja – Gregório, Ambrósio, Agostinho, Jerônimo. Outros, finalmente, não têm duvidado propor São Tomás às Academias e Escolas Superiores como modelo e mestre a quem podiam seguir com segurança. E a tal respeito merecem recordar-se aqui as palavras de São Urbano V à Academia de Tolosa: “Queremos, pelo teor das presentes mandamos que se sigais as doutrinas de São Tomás como verídicas e católicas e, que envideis todos os esforços para desenvolvê-las” (Cons. 5, 3.08.1368). Seguindo o exemplo de Urbano V, Inocêncio XII impõe as mesmas prescrições à Universidade de Louvaina, e Bento XIV, ao Colégio Dionisiano de Granada. A fim de pôr termo a essas decisões dos Sumos Pontífices acerca de S. Tomás de Aquino, acrescentaremos o seguinte testemunho de Inocêncio VI: “A doutrina de São Tomás tem sobre as outras, excetuando a canônica, a propriedade dos termos, o modo de expressão, a verdade das proposições, de sorte que os que a seguem nunca se vêem surpreendidos fora do caminho da verdade, e quem a combate tem sido sempre suspeito de erro” (Sermão de S. Tomás).
26 – Os próprios Concílios Ecumênicos, em que brilha a flor da sabedoria colhida em toda a terra, se têm ocupado sempre em prestar a Tomás de Aquino especial homenagem. Nos Concílios de Lião, de Viena, de Florença, do Vaticano, acreditar-se-ia ver Tomás tomar parte, presidir de certo modo às deliberações e decretos dos Padres Conciliares, e combater com grande vigor e com mais feliz êxito os erros dos gregos, dos hereges e dos racionalistas.
A maior honra, porém, prestada a São Tomás, só a ele reservada e que nenhum dos doutores católicos pode partilhar, provém dos Padres do Concilio Tridentino, quando fizeram que, no meio da santa assembléia, com o livros das Escrituras e com os decretos dos Papas, fosse colocada aberta sobre o mesmo altar a Suma Teológica de Tomás de Aquino para dela extrair conselhos, razões e decisões.
27 – Finalmente, outra palma parece ter sido reservada a este homem incomparável: ter sabido granjear dos mesmos inimigos do dogma católico o tributo de suas homenagens, de seus elogios e de sua admiração. Com efeito, é sabido que entre os principais promotores de heresias houve alguns que declararam, em alta voz, que suprimida a doutrina de São Tomás de Aquino se comprometiam a empreender uma luta vantajosa contra todos os doutores católicos e aniquilar a Igreja. Infundada esperança, mas não infundado testemunho.
QUARTA PARTE
RESTAURAÇAO DA VERDADEIRA FILOSOFIA
28 – Sendo assim, Veneráveis Irmãos, todas as vezes que olhamos para a bondade, força e inegável utilidade dessa disciplina filosófica, tão amada de nossos pais, intendemos que tem sido uma temeridade o não haver continuado em todos os e lugares a honra que merece, principalmente tendo a filosofia escolástica em seu favor o largo uso, a opinião dos homens eminentes e, o que é o principal, a aprovação da Igreja.
Em lugar da doutrina antiga, uma espécie de novo método de filosofia se tem introduzido aqui e ali sem dar os saudáveis frutos que a Igreja e a sociedade civil desejam. Debaixo dos impulsos dos inovadores do século XVI, principiou-se a filosofar sem respeito algum pela fé, com plena licença para deixar voar o pensamento segundo o capricho e critério de cada um. Resultou naturalmente que os sistemas de filosofia se multiplicam de modo extraordinário, e que apareceram opiniões diversas e contraditórias até sobre os objetos mais importantes dos conhecimentos humano. Com a pluralidade de opiniões, chega-se facilmente à vacilação e à duvida; da dúvida, porém, ao erro é facílimo ao conhecimento humano o chegar, como todos sabem.
Os homens deixaram-se facilmente arrastar pelo exemplo, e a paixão da novidade invadiu, segundo parece, em alguns países, até o espírito dos filósofos católicos, os quais, desprezando o patrimônio da antiga sabedoria, preferiram edificar de novo a aperfeiçoar e acrescentar o antigo edifício, projeto esse pouco prudente e que causa grandes males à ciência. Portanto, estes variados sistemas, fundados unicamente na sua autoridade e no arbítrio de cada mestre particular, carecem de base sólida, e por conseguinte, em lugar dessa ciência segura, estável e robusta como a antiga, só podem produzir uma filosofia vacilante e sem consistência. E se tal filosofia carece de força para resistir aos assaltos do inimigo, a si mesma deve imputar as causas da sua fraqueza.
Os homens deixaram-se facilmente arrastar pelo exemplo, e a paixão da novidade invadiu, segundo parece, em alguns países, até o espírito dos filósofos católicos, os quais, desprezando o patrimônio da antiga sabedoria, preferiram edificar de novo a aperfeiçoar e acrescentar o antigo edifício, projeto esse pouco prudente e que causa grandes males à ciência. Portanto, estes variados sistemas, fundados unicamente na sua autoridade e no arbítrio de cada mestre particular, carecem de base sólida, e por conseguinte, em lugar dessa ciência segura, estável e robusta como a antiga, só podem produzir uma filosofia vacilante e sem consistência. E se tal filosofia carece de força para resistir aos assaltos do inimigo, a si mesma deve imputar as causas da sua fraqueza.
Ao dizer isso, não intendemos certamente censurar esses sábios avisados, que empregam na cultura filosófica o seu gênio, sua ambição e a riqueza de novas invenções, e compreendemos muito bem que todos esses elementos concorrem para o progresso da ciência. Devemos, porém, evitar com o maior cuidado desse engenho e dessa erudição os únicos ou principais da sua aplicação.
O mesmo se deve pensar da teologia sagrada. É bom que ela seja ajudada e ilustrada pela luz de uma variada erudição. É, porém, absolutamente necessário tratá-la com a seriedade dos escolásticos, a fim de que, com as forças reunidas da Revelação e da razão, não deixe de ser “o inexpugnável baluarte da fé” (Sixto V, Bulla cit.).
29 – É, pois, feliz aspiração a dos numerosos interessados pela filosofia, que, desejosos de empreender, nestes últimos anos eficazmente a sua restauração, se têm consagrado e, consagram ainda a utilizar a admirável doutrina de Tomás de Aquino e a devolver-lhe o antigo esplendor. Animados com o mesmo espírito vários membros de vossa ordem, Veneráveis Irmãos, têm entrado com ardor na mesma tarefa. É com alegria que o reconhecemos. Louvando-os com efusão, os exortamos a perseverar em tão grande empreendimento. Aos outros, advertimos que nada é mais conforme com o nosso coração e nada desejamos tanto senão vê-los oferecer ampla e copiosamente à juventude estudiosa as águas puríssimas da sabedoria que dimanam em torrentes contínuas do Doutor Angélico.
30 – Muitas razões provocam em Nós este ardente desejo. Primeiramente, como a fé cristã se vê diariamente, em nossos tempos, combatida pelas maquinações e sofismas de um falsa sabedoria, é necessário que todos os jovens, especialmente os que são educados para o serviço da Igreja, sejam nutridos com alimento forte dessa doutrina, para, fortes e munidos dessas armas, maduramente se acostumem a tratar com sabedoria e coragem a causa da religião, prontos sempre, como diz o Apóstolo, “a dar conta, a quem lha pedir, da esperança que existe em nós” (I Ped. , 5); assim como “a exortar em sã doutrina e convencer os que a contradizem “ (Tito 1, 9). Além disso, grande número de homens que “afastando o espírito da fé, desprezam instituições católicas e professam que seu único mestre guia é a razão. Para os curar e trazer à graça e ao mesmo tempo à fé católica, além do auxílio sobrenatural de Deus, nada mais vemos mais oportuno do que as sólidas doutrinas dos Padres e dos Escolásticos, que põem à vista inabaláveis bases da fé, sua origem divina, sua verdade certa, seus motivos de persuasão, os benefícios que tem feito ao gênero humano, sua perfeita harmonia com a razão, e isto com tanta força e evidência, quanta é necessária afazer curvar os espíritos mais rebeldes e mais obstinados.
31 – Todos vemos em que tristíssima situação está a família e a sociedade por causa da peste das opiniões perversas. Por certo que ambas gozariam de paz mais perfeita e de maior segurança, se nas Academias e nas escolas se ensinassem doutrinas mais sãs e mais conformes com o ensino da Igreja, ensino como se acha nas obras de Tomás de Aquino. O que ele ensina acerca da verdadeira natureza da liberdade em todos os tempos e, que, em nossos, degenerou em licenciosidade, o que a respeito da origem divina de qualquer autoridade, das leis e da sua força, do império paternal e justo dos grandes princípios, da obediência aos poderes superiores, da mútua caridade entre todos, o que acerca dessas coisas e de outras do mesmo gênero é tratado por S. Tomás, tem a maior e mais invencível força para lançar por terra esses princípios de um novo direito que todos conhecem ser perigoso à paz, à ordem e ao bem estar social.
32 – Finalmente, todos os conhecimentos humanos devem esperar grande incremento e grande defesa vindos dessa restauração dos estudos filosóficos que nós temos proposto.
Porque da filosofia, como sabedoria moderadora que é, costumam as belas artes tomar a sã razão e o reto método, e beber dela o seu espírito como de fonte comum da vida. De fato, e por uma constante experiência se comprova que as artes liberais floresceram principalmente quando permaneceram incólumes a honra e o juízo da filosofia. Contrariamente, têm sido relegadas ao esquecimento e ao desprezo, quando a filosofia tem decaído e se tem envolvido em erros e vãs sutilezas.
As mesmas ciências físicas que agora são de tanto valor, e que causam singular admiração em toda aparte com tantas maravilhosas invenções, não só nenhum dano hão de sofrer causado pelo restabelecimento da filosofia antiga, mas antes receberão muito auxílio. Pois que para o frutuoso exercício e incremento delas não basta só a consideração dos fatos e a contemplação da natureza, senão que, verificados os fatos, deve subir-se mais alto e procurar com todo o cuidado reconhecer a natureza das coisas corpóreas, investigar as leis que a obedecem e os princípios donde provém a ordem das mesmas, sua unidade no meio da verdade, e sua afinidade no meio da diversidade. Para cujas investigações é admirável a força, luz e auxílio que presta a filosofia escolástica, se for ensinada com lúcida inteligência.
A este respeito, apraz-nos consignar que só com grave injúria se pode atribuir à mesma filosofia o defeito de opor-se ao adiantamento e progresso das ciências naturais. Os escolásticos, com efeito, seguindo o parecer dos Santos Padres, tendo ensinado a cada povo que a inteligência só por meio das coisas sensíveis pode elevar-se ao conhecimento de seres incorpóreos e imateriais, têm compreendido por si mesmos que nada mais útil para o filósofo do que investigar atentamente os segredos da natureza, e aplicar-se por largo tempo ao estudo das coisas físicas. Isso mesmo fizeram eles. São Tomás, o Bem Aventurado Santo Alberto Magno e outros promotores da Escolástica, não se entregaram à contemplação da filosofia sem que também não dessem grande atenção ao conhecimento das coisas naturais. Antes, nessa ordem de conhecimentos, muitas das suas afirmações e dos seus princípios são aprovados pelos mestres modernos que reconhecem a sua exatidão. Além disso, mesmo neste nosso tempo, muitos e insignes doutores das ciências físicas têm dado público testemunho de que entre as afirmações certas e verdadeiras da física moderna e os princípios filosóficos da Escola, não existe contradição.
CONCLUSÃO
33 – Nós, pois, proclamando que é preciso receber de boa vontade e com reconhecimento tudo o que for sabidamente dito, ou utilmente descoberto seja por quem for, vos exortamos, Veneráveis Irmãos, com muito empenho, a que, para defesa e, exaltação da fé católica, para o bem social e para a promoção de todas as ciências, ponhais em vigor e deis a maior extensão possível, à preciosa doutrina de São Tomás. Dizemos doutrina de São Tomás, porque se se encontrar nos Escolásticos, alguma questão demasiado sutil, alguma afirmação inconsiderada, ou alguma coisa que não esteja em harmonia com as doutrinas experimentadas nos séculos posteriores, ou que seja finalmente destituída de probabilidade, não intentamos de modo algum propô-la para ser repetida em nossa época.
Quanto ao mais, diligenciem os mestres, cuidadosamente escolhidos por vós, fazer penetrar no espírito dos discípulos a doutrina de São Tomás; façam, sobretudo, notar claramente quanto esta é superior às outras em solidez e elevação. Que as Academias que tendes instituído ou houverdes de instituir para o futuro, expliquem esta doutrina a defendam e utilizem para refutação dos erros dominantes.
Para evitar, porém, que se aceite como verdadeiro o que é apenas hipotético, e que se beba como água pura o que não é, providencial para que a “sabedoria e Tomás se colha em seus próprios mananciais ou ao menos nos arroios que, saindo do próprio manancial, correm todavia claros e límpidos conforme o testemunho dos doutores. Dos arroios que se dizem derivar do manancial, mas que estão na realidade cheios de águas estagnadas e insalubres, afastai, com muito cuidado, o espírito dos jovens.
34 – Sabemos, porém, que todos os nossos esforços serão inúteis, Veneráveis Irmãos, se a nossa empresa não for secundada por Aquele que nas Escrituras é chamado “Deus das ciências” (I Reg. 2, 3). Elas nos advertem também “que todo o bem excelente, todo o dom perfeito vem de cima, descendo do Pai das luzes” (Pacob 1, 17). E mais: “Se alguém carece de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente, e não o lança em rosto, e ser-lhe-á dada” (I. c. 5, 5).
Nisto sigamos também os conselhos do Doutor Angélico que nunca se entregava ao estudo e ao trabalho sem que antes tivesse recorrido a Deus por meio da oração, e que ingenuamente confessava que, quanto sabia, o devia, não tanto a seu estudo e trabalho, como ao auxílio divino.
Roguemos, pois, a Deus todos juntos com espírito humilde e coração unânime que derrame sobre os filhos da Igreja o espírito de ciência e inteligência, lhes abre o sentir para entenderem a sabedoria.
Para obter, com maior abundância ainda, os frutos da bondade divina, interpondo para com Deus o onipotente auxílio da Bem Aventurada Virgem Maria, sede da sabedoria, recorrei ao mesmo tempo, à intercessão de São José, puríssimo esposo da Virgem, assim como os grandes Apóstolos São Pedro e São Paulo, que renovarão, com a verdade a terra infestada pelo contágio do erro, enchendo-a com o esplendor da luz celeste.
35 – Enfim, sustentado pela segurança do auxílio divino, confiando em vosso pastoral zelo, a todos damos, Veneráveis Irmãos, do íntimo do coração, assim como ao vosso clero e ao povo confiado a vosso cuidado, a Bênção Apostólica, como prova dos bens celestes e testemunho do Nosso particular afeto.
Dado em Roma, junto de São Pedro, aos 4 de agosto de 1879, segundo ano do Nosso Pontificado.
LEÃO XIII, PAPA
“SPIRITUS PARACLITUS”, de Benedicto XV
CARTA ENCÍCLICA
SPIRITUS PARACLITUS
DEL SUMO PONTÍFICE
BENEDICTO XV
BENEDICTO XV
SOBRE LA INTERPRETACIÓN
DE LA SAGRADA ESCRITURA
DE LA SAGRADA ESCRITURA
1. El Espíritu Consolador, habiendo enriquecido al género humano en las Sagradas Letras para instruirlo en los secretos de la divinidad, suscitó en el transcurso de los siglos numerosos expositores santísimos y doctísimos, los cuales no sólo no dejarían infecundo este celestial tesoro(1), sino que habían de procurar a los fieles cristianos, con sus estudios y sus trabajos, la abundantísima consolación de las Escrituras. El primer lugar entre ellos, por consentimiento unánime, corresponde a San Jerónimo, a quien la Iglesia católica reconoce y venera como el Doctor Máximo concedido por Dios en la interpretación de las Sagradas Escrituras.
2. Próximos a celebrar el decimoquinto centenario de su muerte, no querernos, venerables hermanos, dejar pasar una ocasión tan favorable sin hablaros detenídamente de la gloria y de los méritos de San Jerónimo en la ciencia de las Escrituras. Nos sentimos movido por la conciencia de nuestro cargo apostólico a proponer a la imitación, para el fomento de esta nobilísima disciplina, el insigne ejemplo de varón tan eximio, y a confirmar con nuestra autoridad apostólica y adaptar a los tiempos actuales de la Iglesia las utilísimas advertencias y prescripciones que en esta materia dieron nuestros predecesores, de feliz memoria, León XIII y Pío X.
3. En efecto, San Jerónimo, «hombre extraordinariamente católico y muy versado en la ley sagrada»(2), «maestro de católicos»(3), «modelo de virtudes y maestro del mundo entero»(4), habiendo ilustrado maravillosamente y defendido con tesón la doctrina católica acerca de los libros sagrados, nos suministra muchas e irnportantes enseñanzas que emplear para inducir a todos los hijos de la Iglesia, y especialmente a los clérigos, el respeto a la Escritura divina, unido a su piadosa lectura y meditación asidua.
4. Como sabéis, venerables hermanos, San Jerónimo nació en Estridón, «aldea en otro tiempo fronteriza entre Dalmacia y Pannonia»(5), y se crió desde la cuna en el catolicismo(6); desde que recibió aquí mismo en Roma la vestidura de Cristo por el bautismo(7), empleó a lo largo de su vida todas sus fuerzas en investigar, exponer y defender los libros sagrados. Iniciado en las letras latinas y griegas en Roma, apenas había salido de las aulas de los retóricos cuando, joven aún, acometió la interpretación del profeta Abdías: con este ensayo «de ingenio pueril»(8), de tal manera creció en él el amor de las Escrituras, que, como si hubiera encontrado el tesoro de que habla la parábola evangélica, consideró que debía despreciar por él «todas las ventajas de este mundo»(9). Por lo cual, sin arredrarse por las dificultades de semejante proyecto, abandonó su casa, sus padres, su hermana y sus allegados; renunció a su abastecida mesa y marchó a los Sagrados Lugares de Oriente, para adquirir en mayor abundancia las riquezas de Cristo y la ciencia del Salvador en la lectura y estudio de la Biblia(10).
5. Más de una vez refiere él mismo cuánto hubo de sudar en el empeño: «Me consumía por un extraño deseo de saber, y no fui yo, como algunos presuntuosos, mi propio maestro. Oí frecuentemente y traté en Antioquía a Apolinar de Laodicea, y cuando me instruía en las Sagradas Escrituras, nunca le escuché su reprobable opinión sobre los sentidos de la misma»(11). De allí marchó a la región desierta de Cálcide, en la Siria oriental, para penetrar más a fondo el sentido de la paIabra dívina y refrenar al mismo tiempo, con la dedicación al estudio, los ardores de la juventud; allí se hizo discípulo de un cristiano convertido del judaísmo, para aprender hebreo y caldeo. «Cuánto trabajo empleé, cuántas dificultades hube de pasar, cuántas veces me desanimé, cuántas lo dejé para comenzarlo de nuevo, llevado de mi ansia de saber; sólo yo, que lo sufrí, podría decirlo, y los que convivieron conmigo. Hoy doy gracias a Dios, porque percibo los dulces frutos de la amarga semilla de las letras»(12).
6. Mas como las turbas de los herejes no lo dejaron tranquilo ni siquiera en aquella soledad, marchó a Constantinopla, donde casi por tres años tuvo como guía y maestro para la interpretación de las Sagradas Letras a San Gregorio el Teólogo, obispo de aquella sede y famosísimo por su ciencia; en esta época tradujo al latín las Homilías de Orígenes sobre los Profetas y la Crónica de Eusebio, y comentó la visión de los serafines de Isaías. Vuelto a Roma por las dificultades de la cristiandad, fue familiarmente acogido y empleado en los asuntos de la Iglesia por el papa San Dámaso(13). Aunque muy ocupado en esto, no dejó por ello de revolver los libros divinos(14), de transcribir códices(15) y de informar en el conocimiento de la Biblia a discípulos de uno y otro sexo(16), y realizó el laboriosísimo encargo que el Pontífice le hizo de enmendar la versión latina del Nuevo Testamento, con tal diligencia y agudeza de juicio, que los modernos conocedores de estas materias cada día estiman y admiran más la obra jeronimiana.
7. Pero, como su atracción máxima eran los Santos Lugares de Palestina, muerto San Dámaso, Jerónimo se retiró a Belén, donde, habiendo construido un cenobio junto a la cuna de Cristo, se consagró todo a Dios, y el tiempo que le restaba después de la oración lo consumía totalmente en el estudio y enseñanza de la Biblia. Pues, como él mismo certificaba de sí, «ya tenía la cabeza cubierta de canas, y más me correspondía ser maestro que discípulo, y, no obstante, marché a Alejandría, donde oí a Dídimo. Le estoy agradecido por muchas cosas. Aprendí lo que no sabía; lo que sabía no lo perdí, aunque él enseñara lo contrario. Pensaban todos que ya había terminado de aprender; pero, de nuevo en Jerusalén y en Belén, ¡con cuánto esfuerzo y trabajo escuché las lecciones nocturnas de Baranías! Temía éste a los judíos y se me presentaba como otro Nicodemo»(17).
8. Ni se conformó con la enseñanza y los preceptos de estos y de otros maestros, sino que empleó todo género de ayudas útiles para su adelantamiento; aparte de que, ya desde el principio, se había adquirido los mejores códices y comentarios de la Biblia, manejó también los libros de las sinagogas y los volúmenes de la biblioteca de Cesarea, reunidos por Orígenes y Eusebio, para sacar de la comparación de dichos códices con los suyos la forma original del texto bíblico y su verdadero sentido. Para mejor conseguir esto último, recorrió Palestina en toda su extensión, persuadido como estaba de lo que escribía a Domnión y a Rogaciano: «Más claramente entenderá la Escritura el que haya contemplado con sus ojos la Judea y conozca los restos de las antiguas ciudades y los nombres conservados o cambiados de los distintos lugares. Por ello me he preocupado de realizar este trabajo con los hebreos mejor instruidos, recorriendo la región cuyo nombre resuena en todas las Iglesias de Cristo».
9. Jerónimo, pues, alimentó continuamente su ánimo con aquel manjar suavísimo, explicó las epístolas de San Pablo, enmendó según el texto griego los códices latinos del Antiguo Testamento, tradujo nuevamente casi todos los libros del hebreo al latín, expuso diariamente las Sagradas Letras a los hermanos que junto a él se reunían, contestó las cartas que de todas partes le llegaban proponiéndole cuestiones de la Escritura, refutó duramente a los impugnadores de la unidad y de la doctrina católica; y pudo tanto el amor de la Biblia en él, que no cesó de escribir o dictar hasta que la muerte inmovilizó sus manos y acalló su voz. Así, no perdonando trabajos, ni vigilias, ni gastos, perseveró hasta la extrema vejez meditando día y noche la ley del Señor junto al pesebre de Belén, aprovechando más al nombre católico desde aquella soledad, con el ejemplo de su vida y con sus escritos, que si hubiera consumido su carrera mortal en la capital del mundo, Roma.
10. Saboreados a grandes rasgos la vida y hechos de Jerónimo, vengamos ya, venerables hermanos, a la consideración de su doctrina sobre la dignidad divina y la verdad absoluta de las las crituras. En lo cual, ciertamente, no encontraréis una página en los escritos del Doctor Máximo por donde no aparezca que sostuvo firme y constantemente con la Iglesia católica universal: que los Libros Sagrados, escritos bajo la inspiración del Espíritu Santo, tienen a Dios por autor y como tales han sido entregados a la Iglesia(18). Afirma, en efecto, que los libros de la Sagrada Biblia fueron compuestos bajo la inspiración, o sugerencia, o insinuación, o incluso dictado del Espíritu Santo; más aún, que fueron escritos y editados por El mismo; sin poner en duda, por otra parte, que cada uno de sus autores, según la naturaleza e ingenio de cada cual, hayan colaborado con la inspiración de Dios. Pues no sólo afirma, en general, lo que a todos los hagiógrafos es común: el haber seguido al Espíritu de Dios al escribir, de tal manera que Dios deba ser considerado como causa principal de todo sentido y de todas las sentencias de la Escritura; sino que, además, considera cuidadosamente lo que es propio de cada uno de ellos. Y así particularmente muestra cómo cada uno de ellos ha usado de sus facultades y fuerzas en la ordenación de las cosas, en la lengua y en el mismo género y forma de decir, de tal manera que de ahí deduce y describe su propia índole y sus singulares notas y características, principalmente de los profetas y del apóstol San Pablo.
11. Esta comunidad de trabajo entre Dios y el hombre para realizar la misma obra, la ilustra Jerónimo con la comparación del artífice que para hacer algo emplea algún órgano o instrumento; pues lo que los escritores sagrados dicen «son palabras de Dios y no suyas, y lo que por boca de ellos dice lo habla Dios como por un instrumento»(19).
Y si preguntamos que de qué manera ha de entenderse este influjo y acción de Dios como causa principal en el hagiógrafo, se ve que no hay diferencia entre las palabras de Jerónimo y la común doctrina católica sobre la inspiración, ya que él sostiene que Dios, con su gracia, aporta a la mente del escritor luz para proponer a los hombres la verdad en nombre de Dios; mueve, además, su voluntad y le impele a escribir; finalmente, le asiste de manera especial y continua hasta que acaba el libro. De aquí principalmente deduce el Santo la suma importancia y dignidad de las Escrituras, cuyo conocimiento compara a un tesoro precioso(20) y a una rica margarita(21), y afirma encontrarse en ellas las riquezas de Cristo(22) y «la plata que adorna la casa de Dios»(23).
12. De tal manera exaltaba con la palabra y el ejemplo la suprema autoridad de las Escrituras, que en cualquier controversia que surgiera recurría a la Biblia como a la más surtida armería, y empleaba para refutar los errores de los adversarios los testimonios de ellas deducidos como los argumentos más sólidos e irrefragables. Así, a Helvidio, que negaba la virginidad perpetua de la Madre de Dios, decía lisa y llanamente: «Así como no negamos esto que está escrito, de igual manera rechazamos lo que no está escrito. Creemos que Dios nació de la Virgen, porque lo leemos(24); no creemos que María tuviera otros hijos después del parto, porque no lo leemos». Y con las mismas armas promete luchar acérrimamente contra Joviniano en favor de la doctrina católica sobre el estado virginal, sobre la perseverancia, sobre la abstinencia y sobre el mérito de las buenas obras: «Contra cada una de sus proposiciones me apoyaré principalmente en los testimonios de las Escrituras, para que no se ande quejando de que se le vence más con la elocuencia que con la verdad»(25). Y en la defensa de sus libros contra el mismo hereje escribe: «Como si hubiera de ser rogado para que se rindiese a mí y no más bien conducido a disgusto y a despecho suyo a la cárcel de la verdad»(26).
13. Sobre la Escritura en general, leemos, en su comentario a Jeremías, que la muerte le impidió terminar: «Ni se ha de seguir el error de los padres o de los antepasados, sino la autoridad de las Escrituras y la voluntad de Dios, que nos enseña»(27). Ved cómo indica a Fabiola la forma y manera de pelear contra los enemigos: «Cuando estés instruido en las Escrituras divinas y sepas que sus leyes y testimonios son ligaduras de la verdad, lucharás con los adversarios, los atarás y llevarás presos a la cautividad y harás hijos de Dios a los en otro tiempo enemigos y cautivos»(28).
14. Ahora bien: San Jerónimo enseña que con la divina inspiración de los libros sagrados y con la suma autoridad de los mismos va necesariamente unida la inmunidad y ausencia de todo error y engaño; lo cual había aprendido en las más célebres escuelas de Occidente y de Oriente, como recibido de los Padres y comúnmente aceptado. Y, en efecto, como, después de comenzada por mandato del pontífice Dámaso la correccíón del Nuevo Testamento, algunos «hombrecillos» le echaran en cara que había intentado «enmendar algunas cosas en los Evangelios contra la autoridad de los mayores y la opinión de todo el mundo», respondió en pocas palabras que no era de mente tan obtusa ni de ignorancia tan crasa que pensara habría en las palabras del Señor algo que corregir o no divinamente inspirado(29). Y, exponiendo la primera visión de Ezequiel sobre los cuatro Evangelios, advierte: «Admitirá que todo el cuerpo y el dorso están llenos de ojos quien haya visto que no hay nada en los Evangelios que no luzca e ilumine con su resplandor el mundo, de tal manera que hasta las cosas consideradas pequeñas y despreciables brillen con la majestad del Espíritu Santo»(30).
15. Y lo que allí afirma de los Evangelios confiesa de las demás «palabras de Dios» en cada uno de sus comentarios, como norma y fundamento de la exégesis católica; y por esta nota de verdad se distingue, según San Jerónimo, el auténtico profeta del falso(31). Porque «las palabras del Señor son verdaderas, y su decir es hacer»(32). Y así, «la Escritura no puede mentir»(33) y no se puede decir que la Escritura engañe(34) ni admitir siquiera en sus palabras el solo error de nombre(35).
16. Añade asimismo el santo Doctor que «considera distintos a los apóstoles de los demás escritores» profanos; «que aquéllos siempre dicen la verdad, y éstos en algunas cosas, como hombres, suelen errar»(36), y aunque en las Escrituras se digan muchas cosas que parecen increíbles, con todo, son verdaderas(37); en esta «palabra de verdad» no se pueden encontrar ni cosas ni sentencias contradictorias entre sí, «nada discrepante, nada diverso»(38), por lo cual, «cuando las Escrituras parezcan entre sí contrarias, lo uno y lo otro es verdadero aunque sea diverso»(39). Estando como estaba firmemente adherido a este principio, si aparecían en los libros sagrados discrepancias, Jerónimo aplicaba todo su cuidado y su inteligencia a resolver la cuestión; y si no consideraba todavía plenamente resuelta la dificultad, volvía de nuevo y con agrado sobre ella cuando se le presentaba ocasión, aunque no siempre con mucha fortuna. Pero nunca acusaba a los hagiógrafos de error ni siquiera levísimo, «porque esto —decía— es propio de los impíos, de Celso, de Porfirio, de Juliano»(40). En lo cual coincide plenamente con San Agustín, quien, escribiendo al mismo Jerónimo, dice que sólo a los libros sagrados suele conceder la reverencia y el honor de creer firmemente que ninguno de sus autores haya cometido ningún error al escribir, y que, por lo tanto, si encuentra en las Escrituras algo que parezca contrario a la verdad, no piensa eso, sino que o bien el códice está equivocado, o que está mal traducido, o que él no lo ha entendido; y añade: «¡Y no creo que tú, hermano mío, pienses de otro modo; no puedo en manera alguna pensar que tú quieras que se lean tus libros, como los de los profetas y apóstoles, de cuyos escritos sería un crimen dudar que estén exentos de todo error»(41).
17. Con esta doctrina de San Jerónimo se confirma e ilustra maravillosamente lo que nuestro predecesor, de feliz memoria, León XIII dijo declarando solemnemente la antigua y constante fe de la Iglesia sobre la absoluta inmunidad de cualquier error por parte de las Escrituras: «Está tan lejos de la divina inspiración el admitir error, que ella por sí misma no solamente lo excluye en absoluto, sino que lo excluye y rechaza con la misma necesidad con que es necesario que Dios, Verdad suma, no sea autor de ningún error». Y después de aducir las definiciones de los concilios Florentino y Tridentino, confirmadas por el Vaticano I, añade: «Por lo cual nada importa que el Espíritu Santo se haya servido de hombres como de instrumentos para escribir, como si a estos escritores inspirados, ya que no al autor principal, se les pudiera haber deslizado algún error. Porque El de tal manera los excitó y movió con su influjo sobrenatural para que escribieran, de tal manera los asistió mientras escribían, que ellos concibieran rectamente todo y sólo lo que El quería, y lo quisieran fielmente escribir, y lo expresaran aptamente con verdad infalible; de otra manera, El no sería el autor de toda la Sagrada Escritura»(42).
18. Aunque estas palabras de nuestro predecesor no dejan ningún lugar a dudas ni a tergiversaciones, es de lamentar, sin embargo, venerables hermanos, que haya habido, no solamente entre los de fuera, sino incluso entre los hijos de la Iglesia católica, más aún —y esto atormenta especialmente nuestro espíritu—, entre los mismos clérigos y maestros de las sagradas disciplinas, quienes, aferrándose soberbiamente a su propio juicio, hayan abiertamente rechazado u ocultamente impugnado el magisterio de la Iglesia en este punto. Ciertamente aprobamos la intención de aquellos que para librarse y librar a los demás de las dificultades de la Sagrada Biblia buscan, valiéndose de todos los recursos de las ciencias y del arte crítica, nuevos caminos y procedimientos para resolverlas, pero fracasarán lamentablemente en esta empresa si desatienden las directrices de nuestro predecedor y traspasan las barreras y los límites establecidos por los Padres.
19. En estas prescripciones y límites de ninguna manera se mantiene la opinión de aquellos que, distinguiendo entre el elemento primario o religioso de la Escritura y el secundarío o profano, admiten de buen grado que la inspiración afecta a todas las sentencias, más aún, a cada una de las palabras de la Biblia, pero reducen y restringen sus efectos, y sobre todo la inmunidad de error y la absoluta verdad, a sólo el elemento primario o religioso. Según ellos, sólo es intentado y enseñado por Dios lo que se refiere a la religión; y las demás cosas que pertenecen a las disciplinas profanas, y que sólo como vestidura externa de la verdad divina sirven a la doctrina revelada, son simplemente permitidas por Dios y dejadas a la debilidad del escritor. Nada tiene, pues, de particular que en las materias físicas, históricas y otras semejantes se encuentren en la Biblia muchas cosas que no es posible conciliar en modo alguno con los progresos actuales de las ciencias. Hay quienes sostienen que estas opiniones erróneas no contradicen en nada a las prescripciones de nuestro predecesor, el cual declaró que el hagiógrafo, en las cosas naturales, habló según la apariencia externa, sujeta a engaño.
20. Cuán ligera y falsamente se afirme esto, aparece claramente por las palabras del Pontífice. Pues ninguna mancha de error cae sobre las divinas Letras por la apariencia externa de las cosas —a la cual muy sabiamente dijo León XIII, siguiendo a San Agustín y a Santo Tomás de Aquino, que había que atender—, toda vez que es un axioma de sana filosofía que los sentidos no se engañan en la percepción de esas cosas que constituyen el objeto propio de su conocimiento. Aparte de esto, nuestro predecesor, sin distinguir para nada entre lo que llaman elemento primario y secundario y sin dejar lugar a ambigüedades de ningún género, claramente enseña que está muy lejos de la verdad la opinión de los que piensan «que, cuando se trata de la verdad de las sentencias, no es preciso buscar principalmente lo que ha dicho Dios, sino examinar más bien el fin para el cual lo ha dicho»; e igualmente enseña que la divina inspiración se extiende a todas las partes de la Biblia sin distinción y que no puede darse ningún error en el texto inspirado: «Pero lo que de ninguna manera puede hacerse es limitar la inspiración a solas algunas partes de las Escrituras o conceder que el autor sagrado haya cometido error».
21. Y no discrepan menos de la doctrina de la Iglesia —comprobada por el testimonio de San Jerónimo y de los demás Santos Padres— los que piensan que las partes históricas de la Escritura no se fundan en la verdad absoluta de los hechos, sino en la que llaman verdad relativa o conforme a la opinión vulgar; y hasta se atreven a deducirlo de las palabras mismas de León XIII, cuando dijo que se podían aplicar a las disciplinas históricas los principios establecidos a propósito de las cosas naturales. Así defienden que los hagiógrafos, como en las cosas físicas hablaron según lo que aparece, de igual manera, desconociendo la realidad de los sucesos, los relataron según constaban por la común opinión del vulgo o por los testimonios falsos de otros y ni indicaron sus fuentes de información ni hicieron suyas las referencias ajenas.
22. ¿Para qué refutar extensamente una cosa tan injuriosa para nuestro predecesor y tan falsa y errónea? ¿Qué comparación cabe entre las cosas naturales y la historia, cuando las descripciones físicas se ciñen a las cosas que aparecen sensiblemente y deben, por lo tanto, concordar con los fenómenos, mientras, por el contrario, es ley primaria en la historia que lo que se escribe debe ser conforme con los sucesos tal como realmente acaecieron? Una vez aceptada la opinión de éstos, ¿cómo podría quedar a salvo aquella verdad inerrante de la narración sagrada que nuestro predecesor a lo largo de toda su encíclica declara deber mantenerse?
23. Y si afirma que se debe aplicar a las demás disciplinas, y especialmente a la historia, lo que tiene lugar en la descripción de fenómenos fisicos, no lo dice en general, sino solamente intenta que empleemos los mismos procedimientos para refutar las falacias de los adversarios y para defender contra sus ataques la veracidad histórica de la Sagrada Escrítura.
24. Y ojalá se pararan aquí los introductores de estas nuevas teorías; porque llegan hasta invocar al Doctor Estridonense en defensa de su opinión, por haber enseñado que la veracidad y el orden de la historia en la Biblia se observa, «no según lo que era, sino según lo que en aquel tiempo se creía», y que tal es precisamente la regla propia de la historia(43). Es de admirar cómo tergiversan en esto, a favor de sus teorías, las palabras de San Jerónimo. Porque ¿quién no ve que San Jerónimo dice, no que el hagiógrafo en la relación de los hechos sucedidos se atenga, como desconocedor de la verdad, a la falsa opinión del vulgo, sino que sigue la manera común de hablar en la imposición de nombres a las personas y a las cosas? Como cuando llama padre de Jesús a San José, de cuya paternidad bien claramente indica todo el contexto de la narración qué es lo que piensa. Y la verdadera ley de la historia para San Jerónimo es que, en estas designaciones, el escritor, salvo cualquier peligro de error, mantenga la manera de hablar usual, ya que el uso tiene fuerza de ley en el lenguaje.
25. ¿Y qué decir cuando nuestro autor propone los hechos narrados en la Biblia al igual que las doctrinas que se deben creer con la fe necesaria para salvarse? Porque en el comentario de la epístola a Filemón se expresa en los siguientes términos: «Y lo que digo es esto: El que cree en Dios Creador, no puede creer si no cree antes en la verdad de las cosas que han sido escritas sobre sus santos». Y después de aducir numerosos ejemplos del Antiguo Testamento, concluye que «el que no creyera en estas y en las demás cosas que han sido escritas sobre los santos no podrá creer en el Dios de los santos»(44).
26. Así pues, San Jerónimo profesa exactamente lo mismo que escribía San Agustín, resumiendo el común sentir de toda la antigüedad cristiana: «Lo que acerca de Henoc, de Elías y de Moisés atestigua la Escritura, situada en la máxima cumbre de la autoridad por los grandes y ciertos testimonios de su veracidad, eso creemos… Lo creemos, pues, nacido de la Virgen María, no porque no pudiera de otra manera existir en carne verdadera y aparecer ante los hombres (como quiso Fausto), sino porque así está escrito en la Escritura, a la cual, si no creyéramos, ni podríamos ser cristianos ni salvarnos»(45).
27. Y no faltan a la Escritura Santa detractores de otro género; hablamos de aquellos que abusan de algunos principios —ciertamente rectos si se mantuvieran en sus justos límites— hasta el extremo de socavar los fundamentos de la verdad de la Biblia y destruir la doctrina católica comúnmente enseñada por los Padres. Si hoy viviera San Jerónimo, ciertamente dirigiría contra éstos los acerados dardos de su palabra, al ver que con demasiada facilidad, y de espaldas al sentido y al juicio de la Iglesia, recurren a las llamadas citas implícitas o a las narraciones sólo en apariencia históricas; o bien pretenden que en las Sagradas Letras se encuentren determinados géneros literarios, con los cuales no puede compaginarse la íntegra y perfecta verdad de la palabra divina, o sostienen tales opiniones sobre el origen de los Libros Sagrados, que comprometen y en absoluto destruyen su autoridad.
28. ¿Y qué decir de aquellos que, al explicar los Evangelios, disminuyen la fe humana que se les debe y destruyen la divina? Lo que Nuestro Señor Jesucristo dijo e hizo piensan que no ha llegado hasta nosotros íntegro y sin cambios, como escrito religiosamente para testigos de vista y oído, sino que —especialmente por lo que al cuarto Evangelio se refiere— en parte proviene de los evangelistas, que inventaron y añadieron muchas cosas por su cuenta, y en parte son referencias de los fieles de la generación posterior; y que, por lo tanto, se contienen en un mismo cauce aguas procedentes de dos fuentes distintas que por ningún indicio cierto se pueden distinguir entre sí. No entendieron así Jerónimo, Agustín y los demás doctores de la Iglesia la autoridad histórica de los Evangelios, de la cual el que vio da testimonio, y su testimonio es verdadero, y él sabe que dice la verdad, para que también vosotros creáis(46). Y así, San Jerónimo, después de haber reprendido a los herejes que compusieron los evangelios apócrifos por «haber intentado ordenar una narración más que tejer la verdad de la historia»(47), por el contrario, de las Escrituras canónicas escribe: «A nadie le quepa duda de que han sucedido realmente las cosas que han sido escritas»(48), coincidiendo una vez más con San Agustín, que, hablando de los Evangelios, dice: «Estas cosas son verdaderas y han sido escritas de El fiel y verazmente, para que los que crean en su Evangelio sean instruidos en la verdad y no engañados con mentiras»(49).
29. Ya veis, venerables hermanos, con cuánto esfuerzo habéis de luchar para que la insana libertad de opinar, que los Padres huyeron con toda diligencia, sea no menos cuidadosamente evitada por los hijos de la Iglesia. Lo que más fácilmente conseguiréis si persuadiereis a los clérigos y seglares que el Espíritu Santo encomendó a vuestro gobierno, que Jerónimo y los demás Padres de la Iglesia aprendieron esta doctrina sobre los Libros Sagrados en la escuela del mismo divino Maestro, Cristo Jesús.
30. ¿Acaso leemos que el Señor pensara de otra manera sobre la Escritura? En sus palabras escrito está y conviene que se cumpla la Escritura, tenemos el argumento supremo para poner fin a todas las controversias. Pero, deteniéndonos un poco en este asunto, ¿quién desconoce o ha olvidado que el Señor Jesús, en los sermones que tuvo al pueblo, sea en el monte junto al lago de Genesaret, sea en la sinagoga de Nazaret y en su ciudad de Cafarnaum, sacaba de la Sagrada Escritura la materia de su enseñanza y los argumentos para probarla? ¿Acaso no tomó de allí las armas invencibles para la lucha con los fariseos y saduceos? Ya enseñe, ya dispute, de cualquier parte de la Escritura aduce sentencias y ejemplos, y los aduce de manera que se deba necesariamente creer en ellos; en este sentido recurre sin distinción a Jonás y a los ninivitas, a la reina de Saba y a Salomón, a Elías y a Eliseo, a David, a Noé, a Lot y a los sodomitas y hasta a la mujer de Lot(50).
31. Y testifica la verdad de los Libros Sagrados, hasta el punto de afirmar solemnemente: Ni una iota ni un ápice pasará de la ley hasta que todo se cumpla (51) y No puede quedar sin cumplimiento la Escritura(52), por lo cual, el que incumpliere uno de estos mandamientos, ¡por pequeño que sea, y lo enseñare así a los hombres, será tenido por el menor en el reino de los cielos(53). Y para que los apóstoles, a los que pronto había de dejar en la tierra, se empaparan de esta doctrina, antes de subir a su Padre, al cielo, les abrió la inteligencia, para que comprendieran las Escrituras, y les dijo: Porque así está escrito y así convenía que el Cristo padeciera y resucitara de entre los muertos al tercer día(54). La doctrina, pues, de San Jerónimo acerca de la importancia y de la verdad de la Escritura es, para decirlo en una sola palabra, la doctrina de Cristo. Por lo cual exhortamos vivamente a todos los hijos de la Iglesia, y en especial a los que forman en esta disciplina a los alumnos del altar, a que sigan con ánimo decidido las huellas del Doctor Estridonense; de lo cual se seguirá, sin duda, que estimen este tesoro de las Escrituras como él lo estimó y que perciban de su posesión frutos suavísimos de santidad.
32. Porque tener por guía y maestro al Doctor Máximo no sólo tiene las ventajas que dejamos dichas, sino otras no pocas ni despreciables que queremos brevemente, venerables hermanos, recordar con vosotros. De entrada se ofrece en primer lugar a los ojos de nuestra mente aquel su amor ardentísimo a la Sagrada Biblia que con todo el ejemplo de su vida y con palabras llenas del Espíritu de Dios manifestó Jerónimo y procuró siempre más y más excitar en los ánimos de los fieles: «Ama las Escrituras Santas —exhorta a todos en la persona de la virgen Demetríades—, y te amará la sabiduría; ámala, y te guardará; hónrala, y te abrazará. Sean éstos tus collares y pendientes»(55).
33. La continua lección de la Escritura y la cuidadosa investigación de cada libro, más aún, de cada frase y de cada palabra, le hizo tener tal familiaridad con el sagrado texto como ningún otro escritor de la antigüedad eclesiástica. A este conocimiento de la Biblia, unido a la agudeza de su ingenio, se debe atribuir que la versión Vulgata, obra de nuestro Doctor, supere en mucho, según el parecer unánime de todos los doctos, a las demás versiones antiguas, por reflejar el arquetipo original con mayor exactitud y elegancia.
34. Dicha Vulgata, que, «recomendada por el largo uso de tantos siglos en la Iglesia», el concilio Tridennno declaró había de ser tenida por auténtica y usada en la enseñanza y en la oración, esperamos ver pronto, si el Señor benignísimo nos concediere la gracia de esta luz, enmendada y restituida a la fe de sus mejores códices; y no dudamos que de este arduo y laborioso esfuerzo, providentemente encomendado a los Padres Benedictinos por nuestro predecesor Pío X, de feliz memoria, se han de seguir nuevas ventajas para la inteligencia de las Escrituras.
35. El amor a las cuales resplandece sobre todo en las cartas de San Jerónimo, de tal manera que parecen tejidas con las mismas palabras divinas; y así como a San Bernardo le resultaba todo insípido si no encontraba el nombre dulcísimo de Jesús, de igual manera nuestro santo no encontraba deleite en las cartas que no estuvieran iluminadas por las Escrituras. Por lo cual escribía ingenuamente a San Paulino, varón en otro tiempo distinguido por su dignidad senatorial y consular, y poco antes convertido a la fe de Cristo: «Si tuvieres este fundamento (esto es, la ciencia de las Escrituras), más aún, si te guiara la mano en tus obras, no habría nada más bello, más docto ni más latino que tus volúmenes… Si a esta tu prudencia y elocuencia se uniera la afición e inteligencia de las Escrituras, pronto te vería ocupar el primer puesto entre los maestros…»(56).
36. Mas por qué camino y de qué modo se deba buscar con esperanza cierta de buen éxito este gran tesoro concedido por el Padre celestial para consuelo de sus hijos peregrinantes, lo indica el mismo Jerónimo con su ejemplo. En primer lugar advierte que llevemos a estos estudios una preparación diligente y una voluntad bien dispuesta. El, pues, una vez bautizado, para remover todos los obstáculos externos que podían retardarle en su santo propósito, imitando a aquel hombre que habiendo hallado un tesoro, por la alegría del hallazgo va y vende todo lo que tiene y compra el campo(57), dejó a un lado las delicias pasajeras y vanas de este mundo, deseó vivamente la soledad y abrazó una forma severa de vida con tanto mayor afán cuanto más claramente había experimentado antes que estaba en peligro su salvación entre los incentivos de los vicios. Con todo, quitados estos impedimentos, todavía le faltaba aplicar su ánimo a la ciencia de Jesucristo y revestirse de aquel que es manso y humilde de corazón, puesto que había experimentado en sí lo que Agustín asegura que le pasó cuando empezó los estudios de las Sagradas Letras. El cual, habiéndose sumergido de joven en los escritos de Cicerón y otros, cuando aplicó su ánimo a la Escritura Santa, «me pareció —dice— indigna de ser comparada con la dignidad de Tulio. Mi soberbia rehusaba su sencillez, y mi agudeza no penetraba sus interioridades. Y es que ella crece con los pequeños, y yo desdeñaba ser pequeño y, engreído con el fausto, me creía grande»(58). No de otro modo Jerónimo, aunque se había retirado a la soledad, de tal manera se deleitaba con las obras profanas, que todavía no descubría al Cristo humilde en la humildad de la Escritura. «Y así, miserable de mí —dice—, ayunaba por leer a Tulio. Después de frecuentes vigilias nocturnas, después de las lágrimas que el recurso de mis pecados pasados arrancaba a mis entrañas, se me venía Plauto a las manos. Si alguna vez, volviendo en mí, comenzaba a leer a los profetas, me horrorizaba su dicción inculta, y, porque con mis ojos ciegos no veía la luz, pensaba que era culpa del sol y no de los ojos»(59). Pero pronto amó la locura de la cruz, de tal manera que puede ser testimonio de cuánto sirva para la inteligencia de la Biblia la humilde y piadosa disposición del ánimo.
37. Y así, persuadido de que «siempre en la exposición de las Sagradas Escrituras necesitamos de la venida del Espíritu Santo» 6° y de que la Escritura no se puede leer ni entender de otra manera de como «lo exige el sentido del Espíritu Santo con que fue escrita»(60), el santo varón de Dios implora suplicante, valiéndose también de las oraciones de sus amigos, las luces del Paráclito; y leemos que encomendaba las explicaciones de los libros sagrados que empezaba, y atribuía las que acababa felizmente, al auxilio de Dios y a las oraciones de los hermanos.
38. Además, de igual manera que a la gracia de Dios, se somete también a la autoridad de los mayores, hasta llegar a afirmar que «lo que sabía no lo había aprendido de sí mismo, ya que la presunción es el peor maestro, sino de los ilustres Padres de la Iglesia»(62); confiesa que «en los libros divinos no se ha fiado nunca de sus propias fuerzas»(63), y a Teófilo, obispo de Alejandría, expone así la norma a la cual había ajustado su vida y sus estudios: «Ten para ti que nada debe haber para nosotros tan sagrado como salvaguardar los derechos del cristiano, no cambiar el sentido de los Padres y tener siempre presente la fe romana, cuyo elogio hizo el Apóstol»(64).
39. Con toda el alma se entrega y somete a la Iglesia, maestra suprema, en la persona de los romanos pontífices; y así, desde el desierto de Siria, donde le acosaban las insidias de los herejes, deseando someter a la Sede Apostólica la controversia de los orientales sobre el misterio de la Santísima Trinidad, escribía al papa Dámaso: «Me ha parecido conveniente consultar a la cátedra de Pedro y a la fe elogiada por el Apóstol, buscando hoy el alimento de mi alma allí donde en otro tiempo recibí la librea de Cristo… Porque no quiero tener otro guía que a Cristo, me mantengo en estrecha comunión con Vuestra Santidad, es decir, con la cátedra de Pedro. Sé muy bien que sobre esta piedra está fundada la Iglesia… Declarad vuestro pensamiento: si os agrada, no temeré admitir las tres hipóstasis; si lo ordenáis, aceptaré que una fe nueva reemplace a la de Nicea y que seamos ortodoxos con las mismas fórmulas de los arrianos»(65). Por último, en la carta siguiente renueva esta maravillosa confesión de fe: «Entretanto, protesto en alta voz: El que está unido a la cátedra de Pedro, está conmigo»(66).
40. Siempre fiel a esta regla de fe en el estudio de las Escrituras, rechaza con este único argumento cualquier falsa interpretación del sagrado texto: «Esto no lo admite la Iglesia de Dios»(67), y con estas breves palabras rechaza el libro apócrifo que contra él había aducido el hereje Vigilancio: «Ese libro no lo he leído jamás. ¿Para qué, si la Iglesia no lo admite?»(68)
41. A fuer de hombre celoso en defender la integridad de la fe, luchó denodadamente con los que se habían apartado de la Iglesia, a los cuales consideraba como adversarios propios: «Responderé brevemente que jamás he perdonado a los herejes y que he puesto todo mi empeño en hacer de los enemigos de la Iglesia mis propios enemigos personales»(69). Y en carta a Rufino: «Hay un punto sobre el cual no podré estar de acuerdo contigo: que, transigiendo con los herejes, pueda aparecer no católico»(70). Sin embargo, condolido por la defección de éstos, les suplicaba que hicieran por volver al regazo de la Madre afligida, única fuente de salvación(71), y rezaba por «los que habían salido de la Iglesia y, abandonando la doctrina del Espíritu Santo, seguían su propio parecer», para que de todo corazón se convirtieran(72).
42. Si alguna vez fue necesario, venerables hermanos, que todos los clérigos y el pueblo fiel se ajusten al espíritu del Doctor Máximo, nunca rnás necesario que en nuestra época, en que tantos se levantan con orgullosa terquedad contra la soberana autoridad de la revelación divina y del magisterio de la Iglesia. Sabéis, en efecto —y ya León XIII nos lo advertía—, qué clase de enemigos tenemos enfrente y en qué procedimientos o en qué armas tienen puesta su confianza. Es, pues, de todo punto necesario que suscitéis para esta empresa cuantos más y mejor preparados defensores, que no sólo estén dispuestos a luchar contra quienes, negando todo orden sobrenatural, no reconocen ni revelación ni inspiración divina, sino a medirse con quienes, ávidos de novedades profanas, se atreven a interpretar las Sagradas Escrituras como un libro puramente humano, o se desvían del sentir recibido en la Iglesia desde la más remota antigüedad, o hasta tal punto desprecian su magisterio que desdeñan las constituciones de la Sede Apostólica y los decretos de la Pontificia Comisión Bíblica, o los silencian e incluso los acomodan a su propio sentir con engaño y descaro. Ojalá todos los católicos se atengan a la regla de oro del santo Doctor y, obedientes al mandato de su Madre, se mantengan humildemente dentro de los límites señalados por los Padres y aprobados por la Iglesia.
43. Pero volvamos a nuestro asunto. Así preparados los espíritus con la piedad y humildad, Jerónimo los invita al estudio de la Biblia. Y antes que nada recomienda incansablemente a todos la lectura cotidiana de la palabra divina: «Entrará en nosotros la sabiduría si nuestro cuerpo no está sometido al pecado; cultivemos nuestra inteligencia mediante la lectura cotidiana de los libros santos»(73). Y en su comentario a la carta a los Efesios: «Debemos, pues, con el mayor ardor, leer las Escrituras y meditar de día y de noche en la ley del Señor, para que, como expertos cambistas, sepamos distinguir cuál es el buen metal y cuál el falso»(74). Ni exime de esta común obligación a las mujeres casadas o solteras. A la matrona romana Leta propone sobre la educación de su hija, entre otros consejos, los siguientes: «Tómale de memoria cada día el trozo señalado de las Escrituras…; que prefiera los libros divinos a las alhajas y sedas… Aprenda lo primero el Salterio, gócese con estos cánticos e instrúyase para la vida en los Proverbios de Salomón. Acostúmbrese con la lectura del Eclesiástico a pisotear las vanidades mundanas. Imite los ejemplos de paciencia y de virtud de Job. Pase después a los Evangelios, para nunca dejarlos de la mano. Embébase con todo afán en los Hechos y en las Epístolas de los Apóstoles. Y cuando haya enriquecido la celda de su pecho con todos estos tesoros, aprenda de memoria los Profetas, y el Heptateuco, y los libros de los Reyes, y los Paralipómenos, y los volúmenes de Esdras y de Ester, para que, finalmente, pueda leer sin peligro el Cantar de los Cantares»(75). Y de la misma manera exhorta a la virgen Eustoquio: «Sé muy asidua en la lectura y aprende lo más posible. Que te coja el sueño con el libro en la mano y que tu rostro, al rendirse, caiga sobre la página santa»(76). Y, al enviarle el epitafio de su madre Paula, elogiaba a esta santa mujer por haberse consagrado con su hija al estudio de las Escrituras, de tal manera que las conocía profundamente y las sabía de memoria. Y añade: «Diré otra cosa que acaso a los envidiosos parecerá increíble: se propuso aprender la lengua hebrea, que sólo parcialmente y con muchos trabajos y sudores aprendí yo de joven y no me canso de repasar ahora para no olvidarla, y de tal manera lo consiguió, que llegó a cantar los Salmos en hebreo sin acento latino alguno. Esto mismo puede verse hoy en su santa hija Eustoquio»(77). Ni olvida a Santa Marcela, que también dominaba perfectamente las Escrituras(78).
44. ¿quién no ve las ventajas y goces que en la piadosa lectura de los libros santos liban las almas bien dispuestas? Todo el que a la Biblia se acercare con espíritu piadoso, fe firme, ánimo humilde y sincero deseo de aprovechar, encontrará en ella y podrá gustar el pan que bajó de los cielos y experimentará en sí lo que dijo David: Me has manifestado los secretos y misterios de tu sabiduría(79), dado que esta mesa de la divina palabra «contiene la doctrina santa, enseña la fe verdadera e introduce con seguridad hasta el interior del velo, donde está el Santo de los Santos»(80).
45. Por lo que a Nos se refiere, venerables hermanos, a imitación de San Jerónimo, jamás cesaremos de exhortar a todos los fieles cristianos para que lean diariamente sobre todo los santos Evangelios de Nuestro Señor y los Hechos y Epístolas de los Apóstoles, tratando de convertirlos en savia de su espíritu y en sangre de sus venas.
46. Y así, en estas solemnidades centenarias, nuestro pensamiento se dirige espontáneamente a la Sociedad que se honra con el nombre de San Jerónimo; tanto más cuanto que Nos mismo tuvimos parte en los principios y en el desarrollo de la obra, cuyos pasados progresos hemos visto con gozo y auguramos mayores para lo porvenir. Bien sabéis, venerables hermanos, que el propósito de esta Sociedad es divulgar lo más posible los Evangelios y los Hechos de los Apóstoles, de tal manera que ninguna familia carezca de ellos y todos se acostumbren a su diaria lectura y meditación. Deseamos ardientemente que esta obra, tan querida por su bien demostrada utilidad, se propague y difunda en vuestra diócesis con la creación de sociedades del mismo nombre y fin agregadas a la de Roma.
47. En este mismo orden de cosas, resultan muy beneméritos de la causa católica aquellos que en las diversas regiones han procurado y siguen procurando editar en formato cómodo y claro y divulgar con la mayor diligencia todos los libros del Nuevo Testamento y algunos escogidos del Antiguo; cosa que ha producido abundancia de frutos en la Iglesia de Dios, siendo hoy muchos más los que se acercan a esta mesa de doctrina celestial que el Señor proporcionó al mundo cristiano por medio de sus profetas, apóstoles y doctores(81).
48. Mas, si en todos los fieles requiere San Jerónimo afición a los libros sagrados, de manera especial exige esto en los que «han puesto sobre su cuello el yugo de Cristo» y fueron llamados por Dios a la predicación de la palabra divina. Con estas palabras se dirige a todos los clérigos en la persona del monje Rústico: «Mientras estés en tu patria, haz de tu celda un paraíso; coge los frutos variados de las Escrituras, saborea sus delicias y goza de su abrazo… Nunca caiga de tus manos ni se aparte de tus ojos el libro sagrado; apréndete el Salterio palabra por palabra, ora sin descanso, vigila tus sentidos y ciérralos a los vanos pensamientos»(82). Y al presbítero Nepociano advierte: «Lee a menudo las divinas Escrituras; más aún, que la santa lectura no se aparte jamás de tus manos. Aprende allí lo que has de enseñar. Procura conseguir la palabra fiel que se ajusta a la doctrina, para que puedas exhortar con doctrina sana y argüir a los contradictores»(83). Y después de haber recordado a San Paulino las normas que San Pablo diera a sus discípulos Timoteo y Tito sobre el estudio de las Escrituras, añade: «Porque la santa rusticidad sólo aprovecha al que la posee, y tanto como edifica a la Iglesia de Cristo con el mérito de su vida, otro tanto la perjudica si no resiste a los contradictores. Dice el profeta Malaquías, o mejor, el Señor por Malaquías: Pregunta a los sacerdotes la ley. Forma parte del excelente oficio del sacerdote responder sobre la ley cuando se le pregunte. Leemos en el Deuteronomio: Pregunta a tu padre, y te indicará; a tus presbíteros, y te dirán. Y Daniel, al final de su santísima visión, dice que los justos brillarán como las estrellas, y los inteligentes, es decir, los doctos, como el firmamento. ¿Ves cuánto distan entre sí la santa rusticidad y la docta santidad? Aquéllos son comparados con las estrellas, y éstos, con el cielo»(84). En carta a Marcela vuelve a atacar irónicamente esta santa rusticidad de algunos clérigos: «La consideran como la única santidad, declarándose discípulos de pescadores, como si pudieran ser santos por el solo hecho de no saber nada»(85). Pero advierte que no sólo estos rústicos, sino incluso los clérigos literatos pecaban de la misma ignorancia de las Escrituras, y en términos severísimos inculca a los sacerdotes el asiduo contacto con los libros santos.
49. Procurad con sumo empeño, venerables hermanos, que estas enseñanzas del santo Doctor se graben cada vez más hondamente en las mentes de vuestros clérigos y sacerdotes; a vosotros os toca sobre todo llamarles cuidadosamente la atención sobre lo que de ellos exige la dignidad del oficio divino al que han sido elevados, si no quieren mostrarse indignos de él: Porque los labios del sacerdote custodiarán la ciencia, y de su boca se buscará la ley, porque es el ángel del Señor de los ejércitos(86). Sepan, pues, que ni deben abandonar el estudio de las Escrituras ni abordarlo por otro camino que el señalado expresamente por León XIII en su encíclica Providentissimus Deus. Lo mejor será que frecuenten el Pontificio Instituto Bíblico, que, según los deseos de León XIII, fundó nuestro próximo predecesor con gran provecho para la santa Iglesia, como consta por la experiencia de estos diez años. Mas, como esto será imposible a la mayoría, es de desear que, a instigación vuestra y bajo vuestos auspicios, vengan a Roma miembros escogidos de uno y otro clero para dedicarse a los estudios bíblicos en nuestro Instituto. Los que vinieren podrán de diversas maneras aprovechar las lecciones del Instituto. Unos, según el fin principal de este gran Liceo, de tal manera profundizarán en los estudios bíblicos, que «puedan luego explicarlos tanto en privado como en público, escribiendo o enseñando…, y sean aptos para defender su dignidad, bien como profesores en las escuelas, bien como escritores en pro de la verdad católica»(87), y otros, que ya se hubieren iniciado en el sagrado ministerio, podrán adquirir un conocimiento más amplio que en el curso teológico de la Sagrada Escritura, de sus grandes intérpretes y de los tiempos y lugares bíblicos; conocimiento preferentemente práctico, que los haga perfectos administradores de la palabra divina, preparados para toda obra buena(88).
50. Aquí tenéis, venerables hermanos, según el ejemplo y la autoridad de San Jerónimo, de qué virtudes debe estar adornado el que se consagra a la lectura y al estudio de la Biblia; oigámosle ahora hacia dónde debe dirigirse y qué debe pretender el conocimiento de las Sagradas Letras. Ante todo se debe buscar en estas páginas el alimento que sustente la vida del espíritu hasta la perfección; por ello, San Jerónimo acostumbraba meditar en la ley del Señor de día y de noche y gustar en las Santas Escrituras el pan del cielo y el maná celestial que tiene en sí todo deleite(89). ¿Cómo puede nuestra alma vivir sin este manjar? ¿Y cómo enseñarán los eclesiásticos a los demás el camino de la salvación si, abandonando la meditación de las Escrituras, no se enseñan a sí mismos? ¿Cómo espera ser en la administración de los sacramentos «guía de ciegos, luz de los que viven en tinieblas, preceptor de rudos, maestro de niños y hombre que tiene en la ley la norma de la ciencia y de la verdad»(90), si se niega a escudriñar esta ciencia de la ley y cierra la puerta a la luz de lo alto? ¡Cuántos ministros sagrados, por haber descuidado la lectura de la Biblia, se mueren ellos mismos y dejan perecer a otros muchos de hambre, según lo que está escrito: Los niños pidieron pan, y no había quien se lo partiera(91). Está desolada la tierra entera porque no hay quien piense en su corazón(92).
51. De la Escritura han de salir, en segundo lugar, cuando sea necesario, los argumentos para ilustrar, confirmar y defender los dogmas de nuestra fe. Que fue lo que él hizo admirablemente en su lucha contra los herejes de su tiempo; todas sus obras manifiestan claramente cuán afiladas y sólidas armas sacaba de los distintos pasajes de la Escritura para refutarlos. Si nuestros expositores de las Escrituras le imitan en esto, se conseguirá, sin duda, lo que nuestro predecesor en sus letras encíclicas Providentissimus Deus declaraba «deseable y necesario en extremo»: que «el uso de la Sagrada Escritura influya en toda la ciencia teológica y sea como su alma».
52. Por último, el uso más importante de la Escritura es el que dice relación con el santo y fructuoso ejercicio del ministerio de la divina palabra. Y aquí nos place corroborar con las palabras del Doctor Máximo las enseñanzas que sobre la predicación de la palabra divina dimos en nuestras letras encíclicas Humani generis. Si el insigne exegeta recomienda tan severa y frecuentemente a los sacerdotes la continua lectura de las Sagradas Letras, es sobre todo para que puedan dignamente ejercer su oficio de enseñar y predicar. Su palabra no tendría ni autoridad, ni peso, ni eficacia para formar las almas si no estuviera informada por la Sagrada Escritura y no recibiese de ella su fuerza y su vigor. «La palabra del sacerdote ha de estar condimentada con la lectura de las Escrituras»(93). Porque «todo lo que se dice en las Escrituras es como una trompeta que amenaza y penetra con voz potente en los oídos de los fieles»(94). «Nada conmueve tanto como un ejemplo sacado de las Escrituras Santas»(95).
53. Y lo que el santo Doctor enseña sobre las reglas que deben guardarse en el empleo de la Biblia, aunque también se refieren en gran parte a los intérpretes, pero miran sobre todo a los sacerdotes en la predicación de la divina palabra. Advierte en primer lugar que consideremos diligentemente las mismas palabras de la Escritura, para que conste con certeza qué dijo el autor sagrado. Pues nadie ignora que San Jerónimo, cuando era necesario, solía acudir al texto original, comparar una versión con otra, examinar la fuerza de las palabras, y, si se había introducido algún error, buscar sus causas, para quitar toda sombra de duda a la lección. A continuación se debe buscar la significación y el contenido que encierran las palabras, porque «al que estudia las Escrituras Santas no le son tan necesarias las palabras como el sentido»(96). En la búsqueda de este sentido no podemos negar que San Jerónimo, imitando a los doctores latinos y a algunos de entre los griegos de los tiempos antiguos, concedió más de lo justo en un principio a las interpretaciones alegóricas. Pero el amor que profesaba a los Libros Sagrados, y su continuo esfuerzo por repasarlos y comprenderlos mejor, hizo que cada día creciera en él la recta estimación del sentido literal y que expusiera sobre este punto principios sanos; los cuales, por constituir todavía hoy el camino más seguro para sacar el sentido pleno de los Libros Sagrados, expondremos brevemente.
54. Debemos, ante todo, fijar nuestra atención en la interpretación literal o histórica: «Advierto siempre al prudente lector que no se contente con interpretaciones supersticiosas que se hacen aisladamente según el arbitrio de los que las inventan, sino que considere lo primero, lo del medio y lo del fin, y que relacione todo lo que ha sido escrito»(97). Añade que toda otra forma de interpretación se apoya, como en su fundamento, en el sentido literal(98), que ni siquiera debe creerse que no existe cuando algo se afirma metafóricamente; porque «frecuentemente la historia se teje con metáforas y se afirma bajo imágenes»(99). Y a los que opinan que nuestro Doctor negaba en algunos lugares de la Escritura el sentido histórico, los refuta él mismo con estas palabras: «No negamos la historia, sino que preferimos la inteligencia espiritual»(100).
55. Puesta a salvo la significación literal o histórica, busca sentidos más internos y profundos, para alimentar su espíritu con manjar más escogido; enseña a propósito del libro de los Proverbios, y lo mismo advierte frecuentemente de las otras partes de la Escritura, que no debemos pararnos en el solo sentido literal, «sino buscar en lo más hondo el sentido divino, como se busca en la tierra el oro, en la nuez el núcleo y en los punzantes erizos el fruto escondido de las castañas»(101). Por ello, enseñando a San Paulino «por qué camino se debe andar en las Escrituras Santas», le dice: «Todo lo que leemos en los libros divinos resplandece y brilla aun en la corteza, pero es más dulce en la médula. Quien quiere comer la nuez, rompe su cáscara»(102). Advierte, sin embargo, cuando se trata de buscar este sentido interior, que se haga con moderación, «no sea que, mientras buscamos las riquezas espirituales, parezca que despreciamos la pobreza de la historia»(103). Y así desaprueba no pocas interpretaciones místicas de los escritores antiguos precisamente porque no se apoyan en el sentido literal: «Que todas aquellas promesas cantadas por los profetas no sean sonidos vacíos o simples términos de retórica, sino que se funden en la tierra y sólo sobre el cimiento de la historia levanten la cumbre de la inteligencia espiritual»(104). Prudentemente observa a este respecto que no se deben abandonar las huellas de Cristo y de los apóstoles, los cuales, aunque consideran el Antiguo Testamento como preparación y sombra de la Nueva Alianza y, consiguientemente, interpretan muchos pasajes típicamente, no por eso lo reducen todo a significaciones típicas. Y, para confirmarlo, apela frecuentemente al apóstol San Pablo, quien, por ejemplo, «al exponer los misterios de Adán y Eva, no niega su creación, sino que, edificando la inteligencia espiritual sobre el fundamento de la historia, dice: Por esto dejará el hombre, etc.(105). Si los intérpretes de las Sagradas Letras y los predicadores de la palabra divina, siguiendo el ejemplo de Cristo y de los apóstoles y obedeciendo a los consejos de León XIII, no despreciaren «las interpretaciones alegóricas o análogas que dieron los Padres, sobre todo cuando fluyen de la letra y se apoyan en la autoridad de muchos», sino que modestamente se levantaren de la interpretación literal a otras más altas, experimentarán con San Jerónimo la verdad del dicho de Pablo: «Toda la Sagrada Escritura, divinamente inspirada, es útil para enseñar, para argüir, para corregir y para instruir en la santidad»(106), y obtendrán del infinito tesoro de las Escrituras abundancia de ejemplos y palabras con que orientar eficaz y suavemente la vida y las costumbres de los fieles hacia la santidad.
56. Por lo que se refiere a la manera de exponer y de expresarse, dado que entre los dispensadores de los misterios de Dios se busca sobre todo la fidelidad, establece San Jerónimo que se debe mantener antes que nada «la verdad de la interpretación», y que «el deber del comentarista es exponer no lo que él quisiera, sino lo que pensaba aquel a quien interpreta»(107) y añade que «hablar en la Iglesia tiene el grave peligro de convertir, por una mala interpretación, el Evangelio de Cristo en evangelio de un hombre»(108). En segundo lugar, «en la exposición de las Santas Escrituras no interesan las palabras rebuscadas ni las flores de la retórica, sino la instrucción y sencillez de la verdad»(109). Habiéndose ajustado en sus escritos a esta norma, declara en sus comentarios haber procurado, no que sus palabras «fueran alabadas, sino que las bien dichas por otro se entendieran como habían sido dichas»(110); y que en la exposición de la palabra divina se requiere un estilo que «sin amaneramientos… exponga el asunto, explique el sentido y aclare las oscuridades sin follaje de palabras rebuscadas»(111).
57. Plácenos aquí reproducir algunos pasajes de Jerónimo por los cuales aparece claramente cuánto aborrecía él la elocuencia propia de los retóricos, que con el vacío estrépito de las palabras y con la rapidez en el hablar busca los vanos aplausos. «No me gusta que seas —dice al presbítero Nepociano— un declamador y charlatán, sino hombre enterado del misterio y muy versado en los secretos de tu Dios. Atropellar las palabras y suscitar la admiración del vulgo ignorante con la rapidez en el hablar es de tontos»(112). «Los que hoy se ordenan de entre los literatos se preocupan no de asimilarse la médula de las Escrituras, sino de halagar los oídos de la multitud con flores de retórica»(113). «Y nada digo de aquellos que, a semejanza mía, si de casualidad llegaron a las Escrituras Santas después de haber frecuentado las letras profanas y lograron agradar el oído de la muchedumbre con su estilo florido, ya piensan que todo lo que dicen es ley de Dios, y no se dignan averiguar qué pensarán los profetas y los apóstoles, sino que adaptan a su sentir testimonios incongruentes; como si fuera grande elocuencia, y no la peor de todas, falsificar los textos y violentar la Escritura a su capricho»(114). «Y es que, faltándoles el verdadero apoyo de las Escrituras, su verborrea no tendría autoridad si no intentaran corroborar con testimonios divinos la falsedad de su doctrina»(115). Mas esta elocuencia charlatana e ignorancia locuaz «no tiene mordiente, ni vivacidad, ni vida; todo es algo desnutrido, marchito y flojo, semillero de plantas y hierbas, que muy pronto se secan y corrompen»; por el contrario, la sencilla doctrina del Evangelio, semejante al pequeño grano de mostaza, «no se convierte en planta, síno que se hace árbol, de manera que los pájaros del cielo vengan y habiten en sus ramas»(116). Por eso él buscaba en todo esta santa sencillez del lenguaje, que no está reñida con la clarídad y elegancia no buscada: «Sean otros oradores, obtengan las alabanzas que tanto ansían y atropellen los torrentes de palabras con los carrillos hinchados; a mí me basta hablar de manera que sea entendido y que, explicando las Escrituras, imite su sencillez»(117). Porque «la interpretación de los eclesiásticos, sin renunciar a la elegancia en el decir, debe disimularla y evitarla de tal manera que pueda ser entendida no por la vanas escuelas de los filósofos o por pocos discípulos, sino por toda clase de hombres»(118). Si los jóvenes sacerdotes pusieren en práctica estos consejos y preceptos y los mayores cuidaran de tenerlos siempre presentes, tenemos la seguridad de que su ministerio sería muy provechoso a las almas de los fieles.
58. Réstanos por recordar, venerables hermanos, los «dulces frutos» que «de la amarga semilla de las letras» obtuvo Jerónimo, en la esperanza de que, a imitación suya, los sacerdotes y fieles encomendados a vuestros cuidados se han de inflamar en el deseo de conocer y experimentar la saludable virtud del sagrado texto. Preferimos que conozcáis las abundantes y exquisitas delicias que llenaban el alma del piadoso anacoreta, más que por nuestras palabras, por las suyas propias. Escuchad cómo habla de esta sagrada ciencia a Paulino, su «colega, compañero y amigo»: «Dime, hermano queridísimo, ¿no te parece que vivir entre estos misterios, meditar en ellos, no querer saber ni buscar otra cosa, es ya el paraíso en la tierra?»(119) Y a su discípula Paula pregunta: «Dime, ¿hay algo más santo que este misterio? ¿Hay algo más agradable que este deleite? ¿Qué manjares o qué mieles más dulces que conocer los designios de Dios, entrar en su santuario, penetrar el pensamiento del Creador y enseñar las palabras de tu Señor, de las cuales se ríen los sabios de este mundo, pero que están llenas de sabiduría espiritual? Guarden otros para sí sus riquezas, beban en vasos preciosos, engalánense con sedas, deléitense en los aplausos de la multitud, sin que la variedad de placeres logre agotar sus tesoros; nuestras delicias serán meditar de día y de noche en la ley del Señor, llamar a la puerta cerrada, gustar los panes de la Trinidad y andar detrás del Señor sobre las olas del mundo»(120). Y nuevamente a Paula y a su hija Eustoquio en el comentario a la epístola a los Efesios: «Si hay algo, Paula y Eustoquio, que mantenga al sabio en esta vida y le anime a conservar el equilibrio entre las tribulaciones y torbellinos del mundo, yo creo que es ante todo la meditación y la ciencia de las Escrituras»(121). Porque así lo hacía él, disfrutó de la paz y de la alegría del corazón en medio de grandes tristezas de ánimo y enfermedades del cuerpo; alegría que no se fundaba en vanos y ociosos deleites, sino que, procediendo de la caridad, se transformaba en caridad activa para con la Iglesia de Dios, a la cual fue confiada por el Señor la custodia de la palabra divina.
59. En las Sagradas Letras de uno y otro Testamento leía frecuentemente predicadas las alabanzas de la Iglesia de Dios. ¿Acaso no representaban la figura de esta Esposa de Cristo y todas y cada una de las ilustres y santas mujeres que ocupan lugar preferente en el Antiguo Testamento? El sacerdocio y los sacrificios, las instituciones y las fiestas y casi todos los hechos del Antiguo Testamento, ¿no eran acaso la sombra de esta Iglesia? ¿Y el ver tantas predicciones de los Salmos y de los Profetas divinamente cumplidas en la Iglesia? ¿Acaso no había oído él en boca de Cristo y de los apóstoles los mayores privilegios de la misma? ¿Qué cosa podía, pues, excitar diariamente en el ánimo de Jerónimo mayor amor a la Esposa de Cristo que el conocimiento de las Escrituras? Ya hemos visto, venerables hermanos, la gran reverencia y ardiente amor que profesaba a la Iglesia romana y a la cátedra de Pedro; hemos visto con cuánto ardor impugnaba a los adversarios de la Iglesia. Alabando a su joven compañero Agustín, empeñado en la misma batalla, y felicitándose por haber suscitado juntamente con él la envidia de los herejes, le dice: «¡Gloria a ti por tu valor! El mundo entero te admira. Los católicos te veneran y reconocen como el restaurador de la antigua fe, y —lo que es timbre de mayor gloria todavía— todos los herejes te aborrecen y te persiguen con igual odio que a mí, suspirando por matarnos con el deseo, ya que no pueden con las armas»(122). Maravillosamente confirma esto Postumiano en las obras de Sulpicio Severo, diciendo de Jerónimo: «Una lucha constante y un duelo ininterrumpido contra los malos le ha granjeado el odio de los perversos. Le odian los herejes porque no cesa de impugnarlos; le odian los clérigos porque ataca su mala vida y sus crímenes. Pero todos los hombres buenos lo admiran y quieren»(122). Por este odio de los herejes y de los malos hubo de sufrir Jerónimo muchas contrariedades, especialmente cuando los pelagianos asaltaron el convento de Belén y lo saquearon; pero soportó gustoso todos los malos tratos y los ultrajes, sin decaer de ánimo, pronto como estaba para morir por la defensa de la fe cristiana. «Mi mayor gozo —escribe a Apronio— es oír que mis hijos combaten por Cristo; que aquel en quien hemos creído fortalezca en nosotros este celo valeroso para que demos gustosamente la sangre por defender su fe… Nuestra casa, completamente arruinada en cuanto a bienes materiales por las persecuciones de los herejes, está llena de riquezas espirituales por la bondad de Cristo. Más vale comer sólo pan que perder la fe»(124).
60. Y si jamás permitió que el error se extendiera impunemente, no puso menor celo en condenar, con su enérgico modo de hablar, la corrupción de costumbres, deseando, en la medida de sus fuerzas, presentar a Cristo una Esposa gloriosa, sin mancha ni arruga ni nada semejante, sino santa e inmaculada(125). ¡Cuán duramente reprende a los que profanaban con una vida culpable la dignidad sacerdotal! ¡Con qué elocuencia condena las costumbres paganas que en gran parte inficionaban a la misma ciudad de Roma! Para contener por todos los medios aquel desbordamiento de todos los vicios y crímenes, les opone la excelencia y hermosura de las virtudes cristianas, convencido de que nada puede tanto para apartar del mal como el amor de las cosas más puras; reclama insistentemente para la juventud una educación piadosa y honesta; exhorta con graves consejos a los esposos a llevar una vida pura y santa; insinúa en las almas más delicadas el amor a la virginidad; tributa todo género de elogios a la dificil, pero suave austeridad de la vida interior; urge con todas sus fuerzas aquel primer precepto de la religión cristiana —el precepto de la caridad unida al trabajo—, con cuya observancia la soledad humana pasaría felizmente de las actuales perturbaciones a la tranquilidad del orden. Hablando de la caridad, dice hermosamente a San Paulino: «El verdadero templo de Cristo es el alma del creyente: adórnala, vístela, ofrécele tus dones, recibe a Cristo en ella. ¿De qué sirve que resplandezcan sus muros con piedras preciosas, si Cristo en el pobre se muere de hambre?»(126). En cuanto a la ley del trabajo, la inculcaba a todos con tanto ardor, no sólo en sus escritos, sino con el ejemplo de toda su vida, que Postumiano, después de haber vivido con Jerónimo en Belén durante seis meses, testifica en la obra de Sulpicio Severo: «Siempre se le encuentra dedicado a la lectura, siempre sumergido en los libros; no descansa de día ni de noche; constantemente lee o escribe»(127). Por lo demás, su gran amor a la Iglesia aparece también en sus comentarios, en los que no desaprovecha ocasión para alabar a la Esposa de Cristo. Así, por ejemplo, leemos en la exposición del profeta Ageo: «Vino lo más escogido de todas las gentes y se llenó de gloria la casa del Señor, que es la Iglesia de Dios vivo, columna y fundamento de la verdad… Con estos metales preciosos, la Iglesia del Señor resulta más esplendorosa que la antigua sinagoga; con estas piedras vivas está construida la casa de Cristo, a la cual se concede una paz eterna»(128). Y en el comentario a Miqueas: «Venid, subamos al monte del Señor; es preciso subir para poder llegar a Cristo y a la casa del Dios de Jacob, la Iglesia, que es la casa de Dios, columna y firmamento de la verdad»(129). Y añade en el proemio del comentario a San Mateo: «La Iglesia ha sido asentada sobre piedra por la palabra del Señor; ésta es la que el Rey introdujo en su habitación y a quien tendió su mano por la abertura de una secreta entrada»(130).
61. Como en los últimos pasajes que hemos citado, así otras muchas veces nuestro Doctor exalta la íntima unión de Jesús con la Iglesia. Como no puede estar la cabeza separada del cuerpo místico, así con el amor a la Iglesia ha de ir necesariamente unido el amor a Cristo, que debe ser considerado como el principal y más sabroso fruto de la ciencia de las Escrituras. Estaba tan persuadido Jerónimo de que este conocimiento del sagrado texto era el mejor camino para llegar al conocimiento y amor de Cristo Nuestro Señor, que no dudaba en afirmar: «Ignorar las Escrituras es ignorar a Cristo»(131). Y lo mismo escribe a Santa Paula: «¿Puede concebirse una vida sin la ciencia de las Escrituras, por la cual se llega a conocer al mismo Cristo, que es la vida de los creyentes?»(132).
62. Hacia Cristo, como a su centro, convergen todas las páginas de uno y otro Testamento; por ello Jerónimo, explicando las palabras del Apocalipsis que hablan del río y del árbol de la vida, dice entre otras cosas: «Un solo río sale del trono de Dios, a saber, la gracia del Espíritu Santo; y esta gracia del Espíritu Santo está en las Santas Escrituras, es decir, en el río de las Escrituras. Pero este río tiene dos riberas, que son el Antiguo y el Nuevo Testamento, y en ambas riberas está plantado el árbol, que es Cristo»(133). No es de extrañar, por lo tanto, que en sus piadosas meditaciones acostumbrase referir a Cristo cuanto se lee en el sagrado texto: «Yo, cuando leo el Evangelio y veo allí los testimonios sacados de la ley y de los profetas, considero sólo a Cristo; si he visto a Moisés y a los profetas, ha sido para entender lo que me decían de Cristo. Cuando, por fin, he llegado a los esplendores de Cristo y he contemplado la luz resplandeciente del claro sol, no puedo ver la luz de la linterna. ¿Puede iluminar una linterna si la enciendes de día? Si luce el sol, la luz de la linterna se desvanece; de igual manera la ley y los profetas se desvanecen ante la presencia de Cristo. Nada quito a la ley ni a los profetas; antes bien, los alabo porque anuncian a Cristo. Pero de tal manera leo la ley y los profetas, que no me quedo en ellos, sino que a través de la ley y de los profetas trato de llegar a Cristo»(134). Y así, buscando piadosamente a Cristo en todo, lo vemos elevarse maravillosamente, por el comentario de las Escrituras, al amor y conocimiento del Señor Jesús, en el cual encontró la preciosa margarita del Evangelio: «No hay más que una preciosa margarita: el conocimiento del Salvador, el misterio de la pasión y el secreto de su resurrección»(135).
63. Este amor a Cristo que le consumía, lo llevaba, pobre y humilde con Cristo, libre el alma de toda preocupación terrenal, a buscar a Cristo sólo, a dejarse conducir por su Espíritu, a vivir con El en la más estrecha unión, a copiar por la imitación su imagen paciente, a no tener otro anhelo que sufrir con Cristo y por Cristo. Por ello, cuando, hecho el blanco de las injurias y de los odios de los hombres perversos, muerto San Dámaso, hubo de abandonar Roma, escribía a punto de subir al barco: «Aunque algunos me consideren como un criminal y reo de todas las culpas —lo cual no es mucho en comparación de mis faltas—, tú haces bien en tener por buenos en tu interior hasta a los mismos malos… Doy gracias a Dios por haber sido hallado digno de que me odie el mundo… ¿Qué parte de sufrimientos he soportado yo, que milito bajo la cruz? Me han echado encima la infamia de un crimen falso; pero yo sé que con buena o mala fama se llega al reino de los cielos»(136). Y a la santa virgen Eustoquio exhortaba a sobrellevar valientemente por Cristo los mismos trabajos, con estas palabras: «Grande es el sufrimiento, pero grande es también la recompensa de ser lo que los mártires, lo que los apóstoles, lo que el mismo Cristo es… Todo esto que he enumerado podrá parecer duro al que no ama a Cristo. Pero el que considera toda la pompa del siglo como cieno inmundo y tiene por vano todo lo que existe debajo del sol con tal de ganar a Cristo; el que ha muerto y resucitado con su Señor y ha crucificado la carne con sus vicios y concupiscencias, podrá repetir con toda libertad: ¿Quién nos separará de la caridad de Cristo?»(137).
64. Sacaba, pues, San Jerónimo abundantes frutos de la lectura de los Sagrados Libros: de aquí aquellas luces interiores con que era atraído cada día más al conocimiento y amor de Cristo; de aquí aquel espíritu de oración, del cual escribió cosas tan bellas; de aquí aquella admirable familiaridad con Cristo, cuyas dulzuras lo animaron a correr sin descanso por el arduo camino de la cruz hasta alcanzar la palma de la victoria. Asimismo, se sentía continuamente atraído con fervor hacia la santísima Eucaristía: «Nada más rico que aquel que lleva el cuerpo del Señor en una cesta de mimbres y su sangre en una ampolla»(138); ni era menor su veneración y piedad para con la Madre de Dios, cuya virginidad perpetua defendió con todas su fuerzas y cuyo ejemplo acabadísimo en todas las virtudes solía proponer como modelo a las esposas de Cristo(139). A nadie extrañará, por lo tanto, que San Jerónimo se sintiera tan fuertemente atraído por los lugares de Palestina que el Redentor y su Madre santísima hicieron sagrados con su presencia. Sus sentimientos a este respecto se adivinan en lo que sus discípulas Paula y Eustoquio escribieron desde Belén a Marcela: «¿En qué términos o con qué palabras podemos describirte la gruta del Salvador? Aquel pesebre en que gimió de niño, es digno de ser honrado, más que con pobres palabras, con el silencio…
¿Cuándo llegará el día en que nos sea dado penetrar en la gruta del Salvador, llorar en el sepulcro del Señor con la hermana y con la madre, besar el madero de la cruz, y en el monte de los Olivos seguir en deseo y en espíritu a Cristo en su ascensión?…»(140). Repasando estos recuerdos, Jerónimo, lejos de Roma, llevaba una vida demasiado dura para su cuerpo, pero tan suave para el alma, que exclamaba: «Ya quisiera tener Roma lo que Belén, más humilde que aquélla, tiene la dicha de poseer»(141).
65. El voto del santo varón se realizó de distinta manera de como él pensaba, y de ello Nos y los romanos con Nos debemos alegrarnos; porque los restos del Doctor Máximo, depositados en aquella gruta que él por tanto tiempo había habitado, y que la noble ciudad de David se gloriaba de poseer en otro tiempo, tiene hoy la dicha de poseerlos Roma en la Basílica de Santa María la Mayor, junto al pesebre del Señor. Calló la voz cuyo eco, salido del desierto, escuchó en otro tiempo todo el orbe católico; pero por sus escritos, que «como antorchas divinas brillan por el mundo entero»(142), San Jerónimo habla todavía. Proclama la excelencia, la integridad y la veracidad histórica de las Escrituras, así como los dulces frutos que su lectura y meditación producen. Proclama para todos los hijos de la Iglesia la necesidad de volver a una vida digna del nombre de cristianos y de conservarse inmunes de las costumbres paganas, que en nuestros días parecen haber resucitado. Proclama que la cátedra de Pedro, gracias sobre todo a la piedad y celo de los italianos, dentro de cuyas fronteras lo estableció el Señor, debe gozar de aquel prestigio y libertad que la dignidad y el ejercicio mismo del oficio apostólico exigen. Proclama a las naciones cristianas que tuvieron la desgracia de separarse de la Iglesia Madre el deber de refugiarse nuevamente en ella, en quien radica toda esperanza de eterna salvación. Ojalá presten oídos a esta invitación, sobre todo, las Iglesias orientales, que hace ya demasiado tiempo alimentan sentimientos hostiles hacia la cátedra de Pedro.
Cuando vivía en aquellas regiones y tenía por maestros a Gregorio Nacianceno y a Dídimo Alejandrino, Jerónimo sintetizaba en esta fórmula, que se ha hecho clásica, la doctrina de los pueblos orientales de su tiempo: «El que no se refugie en el arca de Noé perecerá anegado en el diluvio»(143). El oleaje de este diluvio, ¿acaso no amenaza hoy, si Dios no lo remedia, con destruir todas las instituciones humanas? ¿Y qué no se hundirá, después de haber suprimido a Dios, autor y conservador de todas las cosas? ¿Qué podrá quedar en pie después de haberse apartado de Cristo, que es la vida? Pero el que de otro tiempo, rogado por sus discípulos, calmó el mar embravecido, puede todavía devolver a la angustiada humanidad el precioso beneficio de la paz. Interceda en esto San Jerónimo en favor de la Iglesia de Dios, a la que tanto amó y con tanto denuedo defendió contra todos los asaltos de sus enemigos; y alcance con su valioso patrocinio que, apaciguadas todas las discordias conforme al deseo de Jesucristo, se haga un solo rebaño y un solo Pastor.
66. Llevad sin tardanza, venerables hermanos, al conocimiento de vuestro clero y de vuestros fieles las instrucciones que con ocasión del decimoquinto centenario de la muerte del Doctor Máximo acabamos de daros, para que todos, bajo la guía y patrocinio de San Jerónimo, no solamente mantengan y defiendan la doctrina católica acerca de la inspiración divina de las Escrituras, sino que se atengan escrupulosamente a las prescripciones de la encíclica Providentissimus Deus y de la presente carta. Entretanto, deseamos a todos los hijos de la Iglesia que, penetrados y fortalecidos por la suavidad de las Sagradas Letras, lleguen al conocimiento perfecto de Jesucristo; y, en prenda de este deseo y como testimonio de nuestra paterna benevolencia, os concedemos afectuosamente en el Señor, a vosotros, venerables hermanos, y a todo el clero y pueblo que os está confiado, la bendición apostólica.
Dado en Roma, junto a San Pedro, a 15 de septiembre de 1920, año séptimo de nuestro pontificado.
Notas
1. Conc. Trid., ses.5, decr.: de reform. c.l.
2. Sulp. Sev., Dial. 1,7.
3. Cassian., De inc. 7,26.
4. S. Prosp., Carmen de ingratis V 57.
5. De viris ill. 135.
6. Ep. 82,2,2.
7. Ep. 15 l,l; 16 2,1.
8. In Abd., praefat.
9. In Mt. 13,44.
10. Ep. 22,30 1.
11. Ep. 84 3,1.
12. Ep. 125 12.
13. Ep. 123,9 al. 10; 122,2,1.
14. Ep. 127,7,1s.
15. Ep. 36,1; 32,1.
16. Ep. 45,2; 126,3; 127, 7.
17. Ep. 84,3, l s.
18. Conc. Vat. I, ses.3, const.: de fide catholica c.2.
19 Tract. de Ps. 88.
20. In Mt. 13,44; Tract. de Ps. 77.
21. In Mt. 13 45ss.
22. Quaest. in Gen., praef.
23. In Agg. 2,lss.; cf. In Gal. 2,10, etc.
24. Adv. Hel. 19.
25. Adv. Iovin. 1,4.
2 6. Ep. 49, al. 48,14,1.
27. In Ier. 9, l2ss.
28. Ep. 78,30 (al. 28) mansio.
29. Ep. 27,1, ls.
30. In Ez. 1,15ss.
31. In Mich. 2,Ils; 3,5ss.
32. In Mich. 4,lss.
33. In Ier. 31,35ss.
34. In Nah. 1,9.
35. Ep. 57 7,4.
36. Ep. 82 7,2.
37. Ep. 72,2,2.
38. Ep. 18,7,4; cf. Ep. 46,6,2.
39. Ep. 36,11,2.
40. Ep. 57,9,1.
41. S. Aug., Ad Hieron., inter epist. S. Hieron. 116,3.
42. Litt. enc. Providentissimus Deus.
43. In Ier. 213,15s.; In Mt. 14,8; Adv. Helv. 4.
44. In Philem. 4.
45. S. Aug., Contra Faustum 26,3s,6s.
46. Jn 19,35.
47. In Mt. prol.
48. Ep. 78,1,1; cf. In Mc. 1,13-31.
49. S. Aug., Contra Faustum 26,8.
50. Cf. Mt 12,3.39-42; Lc 17,26-29.32, etc.
51. Mt 5,18.
52. Jn 10,35.
53. Mt 5,19.
54. Lc 24,45s.
55. Ep. 130,20.
56. Ep. 58,9,2; 11,2.
57. Mt 13,44.
58. S. Aug., Conf. 3,5; cf. 8,12.
59. Ep. 22,30,2.
60. In Mich. 1,10-15.
61. In Gal. 5 19s.
62. Ep. 108,26,2.
63. Ad Domnionem et Rogatianum, in 1 par. praef.
64. Ep. 63,2.
65. Ep. 15,1,2.4.
66. Ep. 16,2,2.
67. In Dan. 3,37.
68. Adv. Vigil. 6.
69. Dial. e. Pelag., prol.2.
70. Contra Ruf. 3,43.
71. In Mich. 1,10ss.
72. In Is. 1,6, cap.16,1-5.
7 3. In Tit. 3,9.
74. In Eph. 4,31.
75. Ep. 107,9.12.
76. Ep. 22,17,2; cf. ibíd., 29,2.
77. Ep. 108,26.
78. Ep. 127,7
79. Ps. 50,8.
80. Imit. Chr. 4,11,4.
81. Imit. Chr. 4,11,4.
82. Ep. 125,7,3; 11,1.
83. Ep. 52,7,1.
84. Ep. 53,3ss.
85. Ep. 27,1,2.
86. Mal 2,7.
87. Pío X, Litt. apost. Vinea electa, 7 mayo 1909.
88. Cf. 2 Tim 3,17.
89. Tract. de Ps. 147.
90. Tom 2,19s.
91. Tim 4,4.
92. Jer 12 11.
93. Ep. 52,8,1.
94. In Am. 3,35.
95. In ,Zach. 9,15s.
96. Ep. 29,1,3.
97. In Mt. 25,13.
98. Cf. In Ez. 38,1s; 41,23s; 42,13s; In Mc. 1,13.31; Ep. 129,6,1, etc.
99. In Hab. 3,14s.
100. In Mc. 9,1-7; cf. In Ez. 40-24-27.
101. In Eccles. 12,9s.
102. Ep. 58,9,1.
103. In Edem. 2,24s.
104. In Am. 9,6.
105. In Is. 6,1-7.
106. 2 Tim 3,16.
107. Ep. 49, al. 48,17,7.
108. In Gal. 1,11s.
109. In Am. praef. in 1,3.
110. In Gal. praef. in 1.3.
111. Ep. 36,14,2.
112. Ep. 52,8,1.
113. Dial. cont. Lucif., 11.
114. Ep. 53,7,2.
115. In Tit. 1,10s.
116. In Mt. 13,32.
117. Ep. 36,14, 2.
11 8. Ep. 48, al. 49,4,3.
119. Ep. 53,10,1.
120. Ep. 30,13.
121. In Eph., prol.
122. Ep. 141 2; cf. Ep. 134,1.
123. Postumianus apud Sulp. Sever., Dial. 1,9.
124. Ep. 139.
125. Ef 5,27.
126. Ep. 58,7,1.
127. Postumianus apud Sulp. Sever., Dial. 1,9.
128. In Agg. 2,1s.
129. In Mich. 4 1s.
130. In Mt., prol.
131. In Is., prol.; cf. Tract. de Ps. 77.
132. Ep. 30,7.
133. Tract. de Ps. 1.
134. Tract. in Mc. 91-7.
135. In Mt. 13,45s.
136. Ep. 45,1,6.
137. Ep. 22,38.
138. Ep. 125,20,4.
139. Cf. Ep. 22,35,3.
140. Ep. 46,11,13.
141. Ep. 54,13,6.
142. Cassian., De incarn. 7,26.
143. Ep. 15,2,1.
“QUAS PRIMAS”, de Pio XI
A QUAS PRIMAS, encíclica de Pio XI sobre Cristo Rei, foi interpretada liberalmente como apenas um documento estabelecedor de uma festa religiosa. Não o é: é antes de tudo a Carta Magna da Cristandade. É a última palavra do magistério sobre a ordenação essencial (não acidental) de tudo, incluídos os estados, à Igreja e pois a Cristo, sua cabeça invisível: o mesmo, aliás, que dizem Bonifácio VIII na bula Unam Sanctam e S. Tomás de Aquino em De Regno. Em outras palavras, ou os estados são cristãos e membros da Igreja, ou as sociedades se tornam pasto de demônios (Carlos Nougué).
* * *
QUAS PRIMAS
Sobre Cristo Rei*
CARTA ENCÍCLICA
Aos Veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e Outros Ordinários em paz e comunhão com a Sé Apostólica: sobre Cristo Rei.
PIO PAPA XI
Veneráveis Irmãos, saúde e bênção apostólica.
INTRODUÇÃO
1. Na primeira Encíclica, dirigida, em princípios do nosso Pontificado, aos Bispos do mundo inteiro, indagamos a causa íntima das calamidades que, ante os nossos olhos, avassalam o gênero humano. Ora, lembra-nos haver abertamente declarado duas coisas: uma — que esta aluvião de males sobre o universo provém de terem a maior parte dos homens removido, assim da vida particular como da vida pública, Jesus Cristo e sua lei sacrossanta; a outra — que baldado era esperar paz duradoura entre os povos, enquanto os indivíduos e as nações recusassem reconhecer e proclamar a Soberania de Nosso Salvador. E por isso, depois de afirmarmos que se deve procurar “a paz de Cristo no reino de Cristo”, manifestamos que era intenção nossa trabalhar para este fim, na medida de nossas forças. “No reino de Cristo”, — dizíamos; porque, para restabelecer e confirmar a paz, outro meio mais eficiente não deparávamos do que reconhecer a Soberania de Nosso Senhor. Com o correr do tempo, claramente pressentimos o raiar de dias melhores, quando vimos o zelo dos povos em acudir, — uns pela primeira vez, outros com renovado ardor, — a Cristo e à sua Igreja, única dispensadora da salvação: sinal manifesto de que muitos homens, até o presente como que desterrados do reino do Redentor, por desprezarem sua autoridade, preparam, ainda bem, e levam a efeito sua volta à obediência.
PREPARAÇÃO PROVIDENCIAL DA NOVA FESTA. O ANO SANTO
2. Quanto, ao depois, sobreveio, quanto aconteceu no decorrer do “Ano Santo”, digno, na verdade, de eterna memória, porventura não concorreu eficazmente para a honra e glória do Fundador da Igreja, de sua soberania, de sua suprema realeza?
Exposição Missionária
Realizou-se, primeiro, a “Exposição Missionária”, que, nos corações e nos espíritos dos homens, produziu tão profunda impressão. Ali vimos os incansáveis trabalhos empreendidos pela Igreja, para dilatar cada vez mais o reino de seu Esposo, em todos os continentes, em todas as ilhas, até nas mais longínquas, perdidas no oceano. Vimos quantos países conquistaram ao catolicismo à custa de seus suores, de seu sangue, nossos heroicos e destemidos missionários. Vimos as imensas regiões que ainda ficam por sujeitar ao domínio benfazejo de nosso Rei.
Peregrinações jubilares
Realizaram-se, em seguida, romarias, vindas a Roma, durante o Ano Santo, de todas as partes do mundo, e guiadas por seus Bispos ou sacerdotes. Que motivos impeliam esses peregrinos, senão o desejo de purificarem suas almas e de proclamarem, junto ao Sepulcro dos Apóstolos e em Nossa presença, que estão e querem permanecer sob a autoridade de Cristo?
Canonizações
Por fim, conferimos a seis Confessores ou Virgens as honras dos Santos, depois de cabalmente provadas suas admiráveis virtudes. Não brilhou, nesse dia, com novo fulgor, o reino de Jesus? Que gozo, que consolação não foi para Nossa alma, depois de proferirmos os decretos definitivos, ouvir, no majestoso recinto de S. Pedro, a imensa multidão os fiéis aclamar com uma só voz, entre cantos de ação de graças, a realeza gloriosa de Cristo — “Tu Rex gloriae, Christe!” Num tempo em que indivíduos e estados, joguetes das sedições nascidas do ódio e discórdias civis, se precipitam para a ruína e a morte, a Igreja de Deus, prosseguindo a dar ao gênero humano o alimento da vida espiritual, gera e continua a educar para Cristo gerações sucessivas de Santos e Santas, e Cristo, por sua vez, não cessa de chamar à eterna felicidade do seu reino celeste quantos se Lhe demonstraram súditos fiéis e submissos de seu reino terrestre.
Centenário do Concílio de Niceia
Com o grande jubileu coincidiu o 16.° centenário do Concílio de Niceia. Mandamos festejar este aniversário secular, e Nós mesmo o comemoramos na Basílica Vaticana, com tanto melhor grado, que este Concílio definiu e proclamou dogma de fé católica a “consubstancialidade” do Unigênito de Deus com seu Pai, e, inserindo em sua fórmula de fé, ou “Credo”, as palavras: “cujo reino não terá fim — cujus regni non erit finis” — com isto mesmo afirmou a dignidade real de Cristo.
Súplica em favor de Cristo-Rei
3. Portanto, já que este ano jubilar, em mais de uma ocasião, contribuiu para pôr em realce a realeza de Cristo, julgamos cumprir um dos atos mais próprios do Nosso ofício apostólico, acedendo às súplicas, assim individuais como coletivas, de numerosos Cardeais, Bispos ou fiéis, e encerrar este ano com introduzir na liturgia da Igreja uma festa especial em honra de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei. Este argumento temo-lo tanto a peito, Veneráveis Irmãos, que desejamos entreter-nos dele convosco alguns instantes. Empenho vosso será, depois, tornar, acessível à inteligência e aos sentimentos populares quanto dissermos sobre o culto de “Cristo-Rei”, de modo que a nova festa anual produza agora e no porvir múltiplos frutos.
FUNDAMENTO DOUTRINAL DA NOVA FESTA
Cristo-Rei no sentido metafórico
4. Muito há que a linguagem corrente dá a Cristo o nome de “Rei em sentido metafórico e transposto”. “Rei” é Cristo, com efeito, atenta a eminente e suprema perfeição com que sobrepuja a todas as criaturas. Assim, dizemos que “reina sobre as inteligências humanas”, por causa da penetração do seu espírito e da extensão de sua ciência, mas sobretudo porque é a própria Verdade em pessoa, de quem, portanto, é força que recebam rendidamente os homens toda verdade. Dizemos que “reina sobre as vontades humanas”, porque n’Ele se alia a indefectível santidade do divino querer com a mais reta, a mais submissa das vontades humanas; e também porque suas inspirações entusiasmam nossa vontade livre pelas causas mais nobres. Dizemos, enfim, que é “Rei dos corações”, por causa daquela inefável “caridade que excede a toda humana compreensão” (Ef 3, 19); e porque sua doçura e sua bondade atraem os corações: pois nunca houve, no gênero humano, e nunca haverá quem tanto amor tenha ateado como Cristo Jesus.
Cristo Deus-Homem Rei da Humanidade em sentido próprio
5. Aprofundemos sempre mais o nosso argumento. É manifesto que o nome e o poder de “Rei”, no sentido próprio da palavra, competem a Cristo em sua Humanidade, porque só de Cristo enquanto homem é que se pode dizer: do Pai recebeu “poder, honra e realeza” (Dan 7, 13-14). Enquanto Verbo, consubstanciai ao Pai, não pode deixar de Lhe ser em tudo igual e, portanto, de ter, como Ele, a suprema e absoluta soberania e domínio de todas as criaturas.
Testemunho ao Antigo Testamento
6. Que Cristo seja Rei, não o lemos nós na Escritura? Ele é o “Dominador oriundo de Jacob” (Num 24, 19), Ele o “Rei, dado pelo Pai a Sião, sua Santa Montanha, para receber em herança as nações, e dilatar seu domínio até os confins da Terra” (Sl 2, 6. 8), Ele o verdadeiro “Rei vindouro” de Israel, que o cântico nupcial nos representa sob os traços de um soberano opulento e poderoso, a quem se dirigem estas palavras: “O teu trono, ó Deus, subsistirá por todos os séculos: a vara de retidão é a vara de teu reino” (Sl 44, 7). Omitindo muitos passos análogos, deparamos além, como, para delinear com maior nitidez a fisionomia de Cristo, vem predito que seu reino desconhecerá fronteiras e desfrutará os tesouros da justiça e da paz. “Nos dias d’Ele, aparecerá justiça e abundância de paz… E dominará de mar a mar, e desde o rio até os confins da Terra” (SL 71, 7-8). A esses testemunhos, juntam-se mais numerosos ainda os oráculos dos Profetas, e notadamente a tão conhecida profecia de Isaías: “Já um Pequenino se acha nascido para nós, e um filho nos foi dado, e foi posto o principado sobre o seu ombro; e o nome com que se apelide será Admirável, Conselheiro, Deus, Forte, Pai do futuro século, Príncipe da Paz. O seu império se estenderá cada vez mais, e a paz não terá fim; assentar-se-á sobre o trono de David e sobre o seu reino, para o firmar e fortalecer em juízo e justiça, desde então e para sempre” (Is 9, 6-7).
7. Não é outro o modo como se expressam os demais Profetas. Assim fala Jeremias, quando prenuncia à descendência de David “um germe de justiça”, esse filho de David, que reinará como Rei, “será sábio e obrará segundo a equidade e justiça na Terra” (Jer 23, 5). Assim Daniel, quando prediz a constituição por Deus de um reino “que não será jamais dissipado… e que durará eternamente” (Dan 2, 44). E pouco depois acrescenta: “Eu considerava estas coisas numa visão de noite, e eis que vi um, como o Filho do Homem, que vinha com as nuvens do Céu, e que chegou até o Antigo dos dias; e eles o apresentaram diante d’Ele. E Ele Lhe deu o poder, e a honra, e o reino; todos os povos, e tribos e línguas o servirão: o seu poder é um poder eterno, que Lhe não será tirado, e o seu reino tal, que não será jamais corrompido” (Dan 7, 13-14). Assim Zacarias, quando profetiza a entrada em Jerusalém, entre as aclamações do povo, do “Justo e Salvador”, do Rei cheio de mansidão “montado sobre uma jumenta, e sobre o potrinho da jumenta” (Zac 9, 9). E não apontaram os Evangelistas o cumprimento desta profecia?
Testemunho do Novo Testamento
8. Esta doutrina de “Cristo Rei”, que acabamos de esboçar segundo os livros do Antigo Testamento, bem longe de apagar-se nas páginas do Novo, vem ali, ao invés, confirmada do modo mais esplêndido e em termos admiráveis. Bastará lembrar apenas a mensagem do Arcanjo à Virgem, a anunciar-lhe que dará à luz um Filho; a este Filho, Deus outorgará “o trono de David, seu pai, e reinará eternamente na casa de Jacob, e seu reino não terá fim” (Lc 1, 32-33). Ouçamos agora o testemunho do próprio Cristo no tocante à sua soberania. Sempre que se Lhe oferece ensejo, — em seu último discurso ao povo, sobre a recompensa e os castigos que, na vida eterna, aguardam os justos e os maus; em sua resposta ao governador romano que Lhe perguntara se era Rei; depois de sua ressurreição, quando confia aos Apóstolos a missão de instruírem e batizarem todas as nações, — reivindica o título de “Rei” (Mt 25, 31-40), e publicamente declara que é “Rei” (Jo 18, 37) e que “todo poder Lhe foi dado no Céu e sobre a Terra” (Mt 28, 18). Que entende com isto, senão afirmar a extensão de sua potência, a imensidade do seu reino? À vista disto, deverá fazer-nos estranheza que S. João o proclame “Príncipe dos reis da terra? (Apoc 1, 5) ou que, aparecendo o próprio Jesus ao mesmo Apóstolo em suas visões proféticas “traga escrito no vestido e na coxa: Rei dos reis e Senhor dos senhores”? (Apoc 19, 16). O Pai, com efeito, constituiu a Cristo “herdeiro de todas as coisas” (Heb 1, 1). Cumpre que reine até o fim dos tempos, quando “arrojará todos os seus inimigos sob os pés de Deus e do Pai” (1 Cor 15, 25).
Testemunho da Liturgia
9. Desta doutrina comum a todos os livros santos, naturalmente dimana a seguinte consequência: justo é que a Igreja Católica, reino de Cristo na Terra, chamada a estender-se a todos os homens, a todas as nações do universo, multiplicando os preitos de veneração, celebre, no ciclo anual da Liturgia Santa, a seu Autor e Instituidor como a Rei, como a Senhor, como a Rei dos reis. Com admirável variedade de fórmulas, estas homenagens expressam um e o mesmo pensamento; desses títulos servia-se a Igreja outrora no divino ofício e nos antigos sacramentados; repete-os ainda agora, nas preces públicas, que todos os dias dirige à Infinita Majestade e na oblação da Hóstia Imaculada. Nesse louvor ininterrupto de Cristo-Rei, nota-se para logo a formosa harmonia dos nossos ritos com os ritos orientais, verificando-se aqui também a verdade, do prolóquio: “as normas da oração confirmam os princípios da Fé”.
Argumento teológico
10. O fundamento sobre que pousa esta dignidade e poder de Nosso Senhor, define-o exatamente S. Cirilo de Alexandria, quando escreve: “Numa palavra, possui o domínio de todas as criaturas, não pelo ter arrebatado com violência, senão em virtude de sua essência e natureza” (In Lucam, 10). Esse poder dimana daquela admirável união que os teólogos chamam de “hipostática”. Portanto, não só merece Cristo que anjos e homens O adorem como a seu Deus, senão que também devem homens e anjos prestar-Lhe submissa obediência como a Homem. E assim, só em força dessa união, a Cristo cabe o mais absoluto poder sobre todas as criaturas, posto que, durante sua vida mortal, renunciasse ao exercício desse domínio.
— Mas haverá, outrossim, pensamento mais suave do que refletir que Cristo é nosso Rei não só por direito de natureza, mas também a título de Redentor? Lembrem-se os homens esquecidos de quanto custamos a nosso Salvador. “Não fostes resgatados a preço de coisas perecíveis, prata e outro, mas com o sangue precioso de Cristo, como de cordeiro sem mancha nem defeito” (1 Ped 1, 18-19). Já nos não pertencemos, pois que deu Cristo por nós “tão valioso resgate” (1 Cor 6, 20). Até nossos corpos são “membros de Cristo” (1 Cor 6, 15).
ÍNDOLE DA REALEZA DE CRISTO
A Cristo-Rei cabe o poder legislativo, judicial, executivo
11. Para dizer, em poucas palavras, a importância e índole desta realeza, será apenas necessário asserir que abrange um tríplice poder constitutivo, essencial de toda realeza verdadeira. Provam-no de sobejo os testemunhos de toda a Escritura no tocante à dominação universal de nosso Redentor, e é artigo de fé católica: Cristo Jesus foi dado aos homens não só como Redentor, que lhes merece toda confiança, mas também como Legislador, a quem devemos prestar obediência (Conc. Trid., Sess. 6, can. 21). E, com efeito, não dizem os Evangelhos tão só que promulgou leis, mas no-lo representam no ato de promulgar as leis. A quantos observarem os seus preceitos, declara o Divino Mestre, em várias ocasiões e de diversos modos, que com isto mesmo Lhe hão de provar o seu amor e permanecer em sua caridade (Jo 14, 15); 15, 10). — Quanto ao “poder judicial”, declara o próprio Jesus havê-lo recebido de seu Pai, em resposta aos judeus, que o haviam acusado de violar o descanso do sábado, curando milagrosamente, neste dia, a um paralítico. “O Pai, disse-lhes o Salvador, não julga a ninguém, mas deu todo juízo ao Filho” (Jo 5, 22). Esse poder judicial igualmente inclui o “direito”, — que se não pode dele separar, — de “premiar” e “punir” aos homens, mesmo durante a vida. — A Cristo compete o “poder executivo”, porquanto devem todos sujeitar-se ao seu domínio, e quem for rebelde não poderá evitar a condenação e os suplícios, que Jesus prenunciou.
Realeza espiritual
12. Esta realeza, porém, é principalmente interna e respeita sobretudo a ordem espiritual. Provam-no com toda evidência as palavras da Escritura acima referidas, e, em muitas circunstâncias, o proceder do próprio Salvador. Quando os judeus, e até os Apóstolos, erradamente imaginavam que o Messias libertaria seu povo para restaurar o reino de Israel, Jesus desfez o erro e dissipou a ilusória esperança. Quando, tomada de entusiasmo, a turba, que O cerca, O quer proclamar rei, com a fuga furta-se o Senhor a estas honras, e oculta-se. Mais tarde, perante o governador romano, declara que seu reino “não é deste mundo”. Neste reino, tal como no-lo descreve o Evangelho, é pela penitência que devem os homens entrar. Ninguém, com efeito, pode nele ser admitido sem a fé e o batismo; mas o batismo, conquanto seja um rito exterior, figura e realiza uma regeneração interna. Este reino opõe-se ao reino de Satanás e ao poder das trevas; de seus adeptos exige o desprendimento não só das riquezas e dos bens terrestres, como ainda a mansidão, a fome e sede da justiça, a abnegação de si mesmo, para carregar com a cruz. Foi para adquirir a Igreja que Cristo, enquanto “Redentor”, verteu o seu sangue; para isto é, que, enquanto “Sacerdote”, se ofereceu e de contínuo se oferece como vítima. Quem não vê, em consequência, que sua realeza deve ser de índole toda espiritual, e participar da natureza deste seu duplo ofício?
13. Todavia, fora erro grosseiro denegar a Cristo Homem a soberania sobre as coisas temporais todas, sejam quais forem. Do Pai recebeu Jesus o mais absoluto domínio das criaturas, que Lhe permite dispor delas todas como Lhe aprouver. Contudo, enquanto viveu sobre a Terra, absteve-se totalmente de exercer este domínio temporal, e desprezou a posse e regimento das coisas humanas, que deixou — e deixa ainda — ao arbítrio e domínio dos homens. Verdade graciosamente expressa no conhecido verso: “Não arrebata diademas terrestres, quem distribui coroas celestes. — Non eripit mortalia, qui regna dat caelestia” (Hino Crudelis Herodes, of. da Epif.).
Realeza universal
14. Assim, pois, a realeza do nosso Redentor abraça a totalidade dos homens. Sobre este ponto, de muito bom grado fazemos Nossas as palavras seguintes de Nosso Predecessor Leão XIII, de imortal memória: “Seu império não abrange tão só as nações católicas ou os cristãos batizados, que juridicamente pertencem à Igreja, ainda quando dela separados por opiniões errôneas ou pelo cisma: estende-se igualmente e sem exceções aos homens todos, mesmo alheios à fé cristã, de modo que o império de Cristo Jesus abarca, em todo rigor da verdade, o gênero humano inteiro” (Encícl. Annum Sacrum, 25 de Maio de 1899). E, neste particular, não cabe fazer distinção entre os indivíduos, as famílias e os estados; pois os homens não estão menos sujeitos à autoridade de Cristo em sua vida coletiva do que na vida individual. Cristo é fonte única de salvação para as nações como para os indivíduos. “Não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do Céu nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual nós devamos ser salvos” (At 4, 12). Dele provêm ao estado como ao cidadão toda prosperidade e bem-estar verdadeiro. “Uma e única é a fonte da ventura, assim para as nações como para os indivíduos, pois outra coisa não é a cidade mais que uma multidão concorde de indivíduos” (S. Aug., Epist. ad Macedonium, c. 3). Não podem, pois, os homens de governo recusar à soberania de Cristo, em seu nome pessoal e no de seus povos, públicas homenagens de respeito e submissão. Com isto, sobre estearem o próprio poder, hão de promover e aumentar a prosperidade nacional.
BENEFÍCIOS SOCIAIS DESTA REALEZA
Crise da autoridade
15. Ao subirmos à cátedra pontifical, deplorávamos o lastimável decaimento em que vemos abatido o prestígio do direito e a reverência à autoridade. Quanto então dizíamos não é hoje menos atual ou oportuno. “Excluídos da legislação e dos negócios públicos Deus e Jesus Cristo, e derivando, os que regem, o seu poder, não já do alto, mas dos homens, aconteceu que ruiu o próprio fundamento da autoridade, em consequência de estar removida a razão fundamental do direito que a uns assiste de mandar, e da obrigação consequente que têm outros de obedecer. Seguiu-se daí forçosamente um abalo na humana sociedade inteira, falha assim de amparo e sustentáculo firme” (Encícl. Ubi arcano, DP 19). Se soubessem resolver-se os homens a reconhecer a autoridade de Cristo em sua vida particular e pública, para logo deste ato dimanariam em toda a humanidade incomparáveis benefícios: —: uma justa liberdade, a ordem e o sossego, a concórdia e a paz.
No interior dos estados
16. Com dar à autoridade dos príncipes e chefes de governo certo caráter sagrado, a dignidade real de Nosso Senhor enobrece com isto mesmo os deveres e a sujeição dos cidadãos. Tanto assim que o Apóstolo S. Paulo, depois de prescrever às mulheres casadas e aos escravos de reconhecerem a Cristo na pessoa de seus maridos e senhores, lhes recomendava, ainda assim, de obedecerem não servilmente, como a homens, mas tão só em espírito de fé como a representantes de Cristo, porque ,é indigno de uma alma resgatada por Cristo obedecer com servilismo a um homem. “Fostes resgatados com grande preço: não estejais sujeitos já como escravos a homens” (1 Cor 7, 23). Se os príncipes e governos legitimamente constituídos tivessem a persuasão de que regem menos no próprio nome do que em nome e lugar do Rei Divino, é manifesto que usariam do seu poder com toda a prudência, com toda a sabedoria possíveis. Em legislar e na aplicação das leis, como haveriam de atender ao bem comum e à dignidade humana de seus súbditos! Então floresceria a ordem, então víramos difundir-se e firmar-se a tranquilidade e a paz; embora o cidadão reconhecesse nos príncipes e chefes de governo homens iguais a si pela natureza ou mesmo, por algum respeito, indignos ou repreensíveis, não deixara por isto de lhes obedecer, por depreender neles a imagem e autoridade de Cristo, Deus-Homem.
Vantagens sociais para as nações
17. Pelo que respeita à concórdia e à paz, é manifesto que, quanto mais vasto é um reino, quanto mais largamente abraça o gênero humano, tanto é maior a consciência em seus membros do vínculo de fraternidade que os une. Esta consciência, assim como remove e dissipa os frequentes conflitos, assim também atenua e suaviza os amargores que dos conflitos nascem. E se o reino de Cristo abarcara de fato, como de direito abarca, as nações todas, porque deveríamos perder a esperança dessa paz que à Terra veio trazer o Rei pacífico, esse Rei que veio “para reconciliar todas as coisas” (Col 1, 20), “que não veio para ser servido, mas para servir aos outros” (Mc 10, 45) e que, embora “Senhor de todos” (Gál 4, 1), deu exemplo de humildade e principalmente inculcou esta virtude, de envolta com a caridade, acrescentando: “Meu jugo é suave, e é leve minha carga” (Mt 11, 30). Oh! que ventura não pudéramos gozar, se os indivíduos, se as famílias, se a sociedade se deixasse reger por Cristo! “Então, finalmente — para citarmos as palavras que, há 25 anos, Nosso Predecessor Leão XIII dirigia aos Bispos do mundo inteiro — então fora possível sanar tantas feridas; o direito recobrara seu antigo viço, seu prestígio de outras eras; então tornaria a paz com todos os seus encantos e cairiam das mãos armas e espadas, quando todos de bom grado aceitassem o império de Cristo, Lhe obedecessem, e toda língua proclamasse que “Nosso Senhor Jesus Cristo está na glória de Deus Padre” (Ene. Annum Sacrum).
A FESTA DE JESUS CRISTO-REI
18. E a fim de que a sociedade cristã goze largamente de tão preciosas vantagens e para sempre as conserve, é mister que se divulgue quanto possível o conhecimento da dignidade real de Nosso Salvador. Ora, nada pode, pelo que Nos parece, conseguir melhor este resultado, do que a instituição de uma festa própria e especial em honra de Cristo-Rei.
Influência da liturgia na vida cristã
19. Com efeito, para instruir o povo nas verdades da fé e levá-lo assim às alegrias da vida interna, mais eficazes que os documentos mais importantes do Magistério eclesiástico são as festividades anuais dos sagrados mistérios. Os documentos do Magistério, de fato, apenas alcançam um restrito número de espíritos mais cultos, ao passo que as festas atingem e instruem a universalidade dos fiéis. Os primeiros, por assim dizer, falam uma vez só, as segundas falam sem intermitência de ano para ano; os primeiros dirigem-se, sobretudo, ao entendimento; as segundas influem não só na inteligência, mas também no coração, quer dizer — no homem todo. Composto de corpo e alma, precisa o homem dos incitamentos exteriores das festividades, para que, através da variedade e beleza dos sagrados ritos, recolha no ânimo a divina doutrina, e, transformando-a em substância e sangue, tire dela novos progressos em sua vida espiritual.
Origem histórica e providencial das festas na Igreja
20. Além disso, ensina-nos a própria história, que estas festividades litúrgicas foram introduzidas, no decorrer dos séculos, umas após outras, para responder a necessidades ou vantagens espirituais do povo cristão. Foram-se constituindo para fortalecer os ânimos em presença de algum perigo comum, para premunir os espíritos contra os ardis da heresia, para mover e inflamar os corações a celebrar com mais ardente piedade algum mistério de nossa fé ou algum benefício da divina graça. Assim é que, desde os primeiros tempos da era cristã, quando, acossados das mais cruentas perseguições, os fiéis começaram, com sagrados ritos, a comemorar os mártires, para que — como diz S. Agostinho — “as solenidades dos mártires fossem exortação ao martírio” (Sermo 47, de Sanctis). As honras litúrgicas, mais tardes decretadas aos confessores, às virgens, às viúvas, contribuíram singularmente para promover nos fiéis o zelo pela virtude, indispensável mesmo em tempo de paz. Especialmente as festas em honra da Virgem Beatíssima fizeram com que o povo cristão não só tributasse à Mãe de Deus, sua Protetora por excelência, culto mais assíduo, senão que ao mesmo tempo fosse de contínuo crescendo seu amor filial à Mãe que o Redentor lhe deixara como que em testamento. Dentre os benefícios que dimanaram do culto público e legitimamente prestado à Mãe de Deus e aos Santos do Céu, não é o menor a vitória constante com que a Igreja se cobriu de louros, ao debelar e repelir a heresia e o erro. E nisto devemos admirar os desígnios da Divina Providência, que, segundo costuma, tira o bem do mal. Permitiu que, de tempos a tempos, entibiasse a fé e a piedade popular; permitiu que doutrinas errôneas armassem insídias à piedade católica, mas sempre com o intuito de fazer finalmente fulgir a verdade com novo esplendor e mover os fiéis, espertos da tibieza, a tenderem com novo zelo a graus mais elevados de santidade e perfeição cristã. Idêntica é a origem, idênticos os frutos que produziram as solenidades recentemente introduzidas no calendário litúrgico. Tal é a festa do “Corpus Christi”, instituída quando se esfriava a reverência e o culto para com o SS. Sacramento; celebrada com brilho singular, protraída por oito dias de suplicações coletivas, a nova solenidade devia reconduzir os povos à adoração pública do Senhor. Tal é a festa do Coração Santíssimo de Jesus estabelecida na época em que, abatidos e desalentados pelas tristes doutrinas e o rigorismo sombrio do jansenismo, os fiéis sentiam seus corações regelados e com escrúpulo deles excluíam todo sentimento de amor de Deus e a esperança de conseguirem a eterna salvação.
Oportunidade da festa
21. Para Nós também soou a hora de provermos às necessidades dos tempos presentes e de opormos um remédio eficaz à peste que corrói a sociedade humana. Fazemo-lo, prescrevendo ao universo católico o culto de Cristo-Rei. Peste de nossos tempos é o chamado “laicismo”, com seus erros e atentados criminosos.
Excessos do laicismo
22. Como bem sabeis, Veneráveis Irmãos, não é num dia que esta praga chegou à sua plena maturação; há muito, estava latente nos estados modernos. Começou-se, primeiro, a negar a soberania de Cristo sobre todas as nações; negou-se, portanto, à Igreja o direito de doutrinar o gênero humano, de legislar e reger os povos em ordem à eterna bem-aventurança. Aos poucos, foi equiparada a religião de Cristo aos falsos cultos e indecorosamente rebaixada ao mesmo nível. Sujeitaram-na, em seguida, à autoridade civil, entregando-a, por assim dizer, ao capricho de príncipes e governos. Houve até quem pretendesse substituir à religião de Cristo um simples sentimento de religiosidade natural. Certos estados, por fim, julgaram poder dispensar-se do próprio Deus e fizeram consistir sua religião na irreligião e no esquecimento consciente e voluntário de Deus.
Frutos perniciosos do laicismo
23. Os frutos sobremodo amargosos que, tantas vezes e com tanta persistência, produziu esta apostasia dos indivíduos e dos estados, que desertam a Cristo, expendemo-los na Encíclica “Ubi arcano”. Tornamos a lamentá-los hoje. Frutos desta apostasia são os germes de ódio esparsos por toda parte, as invejas e rivalidades entre nações, que alimentam as discórdias internacionais e dificultam ainda agora a restauração da paz; frutos desta apostasia as ambições desenfreadas, que muitas vezes se encobrem com a máscara do interesse público e do amor da pátria, e suas tristes consequências: dissensões civis, egoísmo cego e desmedido, sem outro fito nem outra regra mais que vantagens pessoais e proveitos particulares. Fruto desta apostasia a perturbação da paz doméstica, pelo esquecimento e desleixo das obrigações familiares, o enfraquecimento da união e estabilidade no seio das famílias, e por fim o abalo na sociedade toda, que ameaça ruir.
Pusilanimidade de certos católicos
24. A festa, doravante ânua, de “Cristo-Rei” dá-nos a mais viva esperança de acelerarmos a tão desejada volta da humanidade a seu Salvador amantíssimo. Fora, com certeza, dever dos católicos, apressar e preparar esta volta com diligente empenho; a muitos deles, contudo, pelo que parece, não toca, na sociedade civil, o posto e a autoridade que conviriam aos apologistas da fé. Talvez deva este fato atribuir-se à indolência e timidez dos bons que se abstêm de toda resistência, ou resistem com moleza, donde provém, nos adversários da Igreja, novo acréscimo de pretensões e de audácia. Mas, desde que a massa dos fiéis se compenetre de que é obrigação sua combater com valentia e sem tréguas sob os estandartes de Cristo-Rei, o zelo apostólico abrasará seus corações, e todos se esforçarão de reconciliar com o Senhor as almas que o ignoram ou dele desertaram; todos, enfim, se esforçarão por manter inviolados os direitos do próprio Deus.
Protesto e reparação
25. Mas não basta. Uma festa, anualmente celebrada por todos os povos em homenagem a Cristo-Rei, será sobremaneira eficaz para condenar e ressarcir, de algum modo, esta apostasia pública, tão desastrada para as nações, gerada pelo laicismo. Com efeito, quanto mais vergonhosamente se passa em silêncio, quer nas conferências internacionais, quer nos Parlamentos, o nome suavíssimo do nosso Redentor, tanto mais alto o devemos aclamar, tanto mais devemos reconhecer os direitos que a Cristo conferem sua dignidade e poder real.
CONVENIÊNCIAS ATUAIS DA INSTITUIÇÃO DA FESTA
Precedentes da festa de Cristo-Rei
26. E quem não vê que, desde os últimos anos do século passado, se ia, de modo admirável, preparando o caminho à instituição desta festa? Ninguém, com efeito, ignora como, com livros que se escreveram nas várias línguas do mundo inteiro, este culto foi explicado e doutamente defendido. Sabem todos que a autoridade e realeza de Cristo foi já reconhecida pela piedosa prática de se consagrarem e dedicarem ao Sagrado Coração de Jesus famílias inumeráveis. E não só famílias, mas também estados e reinos praticaram o mesmo ato. Antes, por iniciativa e direção de Leão XIII, o universo gênero humano foi felizmente consagrado a este Coração Santíssimo, no correr do Ano Santo de 1900. Não podemos preterir os congressos eucarísticos que nossa época viu multiplicar-se em tão grande número. Tão bem serviram à causa da solene proclamação humana. Reunidos para apresentar à veneração e às homenagens populares de uma diocese, de uma província, de uma nação, ou mesmo do mundo inteiro, Cristo-Rei, oculto sob os véus eucarísticos, esses congressos, em conferências realizadas nas suas assembleias, em sermões proferidos nas igrejas, por meio da exposição pública ou da adoração em comum do Santíssimo Sacramento e de grandiosas procissões, enaltecem a Cristo como a Rei que de Deus receberam os homens. Este Jesus, que os ímpios recusaram acolher quando veio a seu reino, pode-se dizer, com toda a verdade, que o povo cristão, movido de uma inspiração divina, vai arrancá-l’O ao silêncio e, por assim dizer, à obscuridão dos templos, para levá-l’O, qual triunfador, pelas ruas das grandes cidades e reintegrá-l’O em todos os direitos de sua realeza.
Excelentes disposições dos fiéis ao saírem do jubileu
27. Para a realização deste Nosso desígnio, de que acabamos de falar, oferece-Nos ensejo sumamente oportuno o “Ano Santo” que finda. Este ano veio relembrar ao espírito e ao coração dos fiéis os bens celestes que sobrepujam todo sentimento natural. Em sua bondade infinita, Deus restitui a uns a sua graça, e confirma a outros no bom caminho, infundindo-lhes novo ardor para aspirarem a dons mais perfeitos. Quer atendamos às numerosas súplicas que nos foram dirigidas, quer consideremos os acontecimentos que se dirigidas, quer consideremos os acontecimentos que se deram no correr do “Ano Santo”, sobeja razão nos assiste de pensarmos que deveras para Nós soou a hora de proferirmos a sentença tão ansiosamente de todos aguardada e que decretemos uma festa especial em honra de Cristo, Rei de todo o gênero humano. Durante este ano, com efeito, como a princípio dissemos, este divino Rei, deveras admirável em seus Santos, conquistou novos triunfos, com a elevação às honras dos altares de mais um manípulo de soldados seus. Durante este ano, uma exposição extraordinária pôs ante os olhos do mundo as fadigas e, de algum modo, os próprios trabalhos dos arautos do Evangelho, e todos puderam admirar as vitórias ganhas por esses campeões de Cristo, para a extensão do seu reino; durante este ano, finalmente, com o centenário do Concílio de Niceia, comemoramos, contra os seus detratores, a defesa e definição do dogma da consubstancialidade do Verbo Humanado com seu Pai, verdade na qual descansa, como em fundamento, a soberania de Cristo sobre todos os povos.
Data e modalidade da festa
28. Portanto, em virtude de Nossa autoridade apostólica, instituímos a festa de “Nosso Senhor Jesus Cristo Rei”, mandando que seja celebrada cada ano, no mundo inteiro, no último domingo de Outubro imediato à solenidade de Todos os Santos. Prescrevemos igualmente que, cada ano, se renove, nesse dia, a consagração do gênero humano ao Coração de Jesus, que já Nosso Predecessor de saudosa memória Pio X ordenara se fizesse anualmente. Contudo, queremos que, neste ano, a renovação se faça a 31 de Dezembro; nesse dia, celebraremos missa pontifical em honra de “Cristo-Rei”, e mandaremos proferir, em Nossa presença, o ato de consagração. Quer parecer-Nos que não pode haver melhor encerramento do “Ano Santo”, e que destarte daremos a “Cristo, Rei Imortal dos séculos”, o testemunho mais eloquente de nossa gratidão e do reconhecimento do universo católico, de quem Nos fazemos intérpretes, pelos benefícios que, neste período de graças, concedeu a Nós mesmo, à Igreja, à cristandade toda.
Objeto formal da nova festa
29. É escusado, Veneráveis Irmãos, explicar-vos longamente os motivos de uma festa especial em honra de “Cristo-Rei”. Pois, conquanto outras festas, já existentes, enalteçam e de algum modo glorifiquem sua dignidade real, basta, contudo, observar que, se todas as festas de Nosso Senhor têm a Cristo, segundo a linguagem dos teólogos, por “objeto material”, de modo algum é o poder e apelativo de Rei “objeto formal” das mesmas.
Seu lugar no ciclo litúrgico
30. Fixando a nova festa em um domingo, quisemos que o clero fosse o único em prestar suas homenagens a “Cristo-Rei”, com a celebração do Santo Sacrifício e a reza do Santo Ofício, mas que o povo, desimpedido de suas ocupações ordinárias, e animado de santa alegria, pudesse dar a Cristo, como a seu Senhor e Soberano, um manifesto testemunho de obediência. Finalmente mais apropriado Nos pareceu o último domingo de Outubro, porque este domingo, em certo modo, encerra o ciclo do ano litúrgico; destarte, os mistérios da vida de Jesus Cristo, comemorados no decorrer do ano que finda, terão na solenidade de “Cristo-Rei” seu como termo e coroa, e antes de celebrar a glória de todos os Santos, a liturgia proclamará e enaltecerá a glória d’Aquele que em todos os Santos e em todos os eleitos triunfa. É dever, é direito vosso, Veneráveis Irmãos, fazer preceder a festa por uma série de instruções que se dêem, em dias determinados, nas diferentes paróquias, para instruir acuradamente o povo da natureza, significado e importância desta festa, por onde os fiéis regulem a sua vida em modo a torná-la digna de súbditos leais e submissos de coração à soberania do Divino Rei.
Esperanças e augúrios
31. Ao fecharmos esta carta, quiséramos ainda, Veneráveis Irmãos, expor-vos brevemente os frutos, que, tanto para a Igreja e a sociedade civil, como para cada um dos fiéis, esperamos deste culto público prestado a Cristo-Rei.
Melhor compreensão dos direitos da Igreja
32. A obrigação de tributar à soberania de Nosso Senhor as homenagens, a que nos referimos, relembra, juntamente, aos homens os direitos da Igreja. Instituída por Cristo, que lhe deu a forma orgânica de sociedade perfeita, exige, em virtude deste direito, que dimana de sua origem divina e que ela não pode abdicar, a plena liberdade, a independência absoluta do poder civil. No desempenho de sua divina missão, de ensinar, reger e conduzir à eterna felicidade todos os membros do reino de Cristo, não pode, de modo algum, depender de vontade estranha. Antes, idêntica liberdade deve o estado conceder às ordens e congregações religiosas de ambos os sexos, pois são os auxiliares mais firmes dos Pastores da Igreja, os que mais eficazmente se empenham em difundir e confirmar o reinado de Cristo, primeiro debelando em si, com a profissão religiosa, o mundo e sua tríplice concupiscência, e depois, pelo fato de haverem abraçado uma profissão de vida mais perfeita, fazendo resplandecer aos olhos de todos, com fulgor contínuo e cada dia crescente, esta santidade de que o divino Fundador quis fazer uma nota distinta de sua Igreja autêntica.
Restauração do culto público e oficial
33. Com a celebração ânua desta festa hão de relembrar-se, outrossim, os Estados que aos governos e à magistratura incumbe a obrigação, bem assim como aos particulares, de prestar culto público a Cristo e sujeitar-se às suas leis. Lembrar-se-ão também os chefes da sociedade civil do juízo final, quando Cristo acusará aos que o expulsaram da vida pública, e a quantos, com desdém, o desprezaram ou desconheceram; de tamanha afronta há de tomar o Supremo Juiz a mais terrível vingança; seu poder real, com efeito, exige que o Estado se reja totalmente pelos mandamentos de Deus e os princípios cristãos, quer se trate de fazer leis, ou de administrar a justiça, quer da educação intelectual e moral da juventude, que deve respeitar a sã doutrina e a pureza dos costumes.
Grande impulso à piedade dos fiéis
34. Que energias, além disso, que virtude não poderão os fiéis haurir da meditação destas verdades, para amoldar seus espíritos aos princípios verdadeiros da vida cristã! Se todo o poder foi dado ao Senhor Jesus, no céu e na terra, se os homens, resgatados pelo seu sangue preciosíssimo, se tornam, com novo título, súditos de seu império, se, finalmente, este poder abraça a natureza humana em seu conjunto, é claro que nenhuma de nossas faculdades se pode subtrair a essa realeza. É mister, pois, que reine em nossas inteligências: com plena submissão, com adesão firme e constante, devemos crer as verdades reveladas e os ensinos de Cristo. É mister que reine em nossas vontades: devemos observar as leis e os mandamentos de Deus. É mister que reine em nossos corações: devemos mortificar nossos afetos naturais, e amar a Deus sobre todas ,as coisas. É mister que reine em nossos corpos e em nossos membros: devemos transformá-los em instrumentos, ou, para falarmos com S. Paulo (Rom 6, 13), “em armas de justiça, oferecidas a Deus”, para aumento da santidade de nossas almas. Eis os pensamentos que, propostos à reflexão dos fiéis e atentamente ponderados, hão de facilmente levá-los a mais elevada perfeição.
Augúrio final
35. Praza a Deus, Veneráveis Irmãos, que os homens, afastados da Igreja, procurem e aceitem, para salvação de suas almas, o jugo suave de Cristo. Quanto a nós todos, por divina misericórdia, súbditos e filhos seus, queira Deus que levemos este jugo, não de má vontade, mas com prazer, mas com amor, mas santamente. Assim, no decorrer de uma vida pautada pelas leis do reino do céu, recolheremos, alegres, grande cópia de frutos, e mereceremos que Cristo, reconhecendo-nos por bons e fiéis servidores de seu reino terrestre, nos admita, depois, a participar com Ele da eterna felicidade e da glória sem fim em seu reino celeste.
Aceitai, Veneráveis Irmãos, ao decorrerem as festas natalícias do Senhor, este presságio e este augúrio, como prova de Nosso paternal afeto, e, como penhor de divinos favores, recebei a bênção apostólica, que, com toda a alma, vos concedemos a Vós, Veneráveis Irmãos, ao vosso clero e à vossa grei.
Dada em Roma, junto a S. Pedro, aos 11 de Dezembro do
Ano Santo de 1925, quarto do Nosso Pontificado.
Pio PP. XI
* II edição, 1950, Editora Vozes Ltda., Petrópolis, R. J. Rio de Janeiro-São Paulo. Imprima-se por comissão especial do Exmo. e Revmo. Sr. Dom Manuel Pedro da Cunha Cintra, Bispo de Petrópolis. Frei Lauro Ostermann O. F. M, Petrópolis, 9-11-1950.
“Providentissimus Deus” – León XIII
CARTA ENCÍCLICA
PROVIDENTISSIMUS DEUS
DEL SUMO PONTÍFICE
LEÓN XIII
SOBRE LOS ESTUDIOS BÍBLICOS
DEL SUMO PONTÍFICE
LEÓN XIII
SOBRE LOS ESTUDIOS BÍBLICOS
1. La providencia de Dios, que por un admirable designio de amor elevó en sus comienzos al género humano a la participación de la naturaleza divina y, sacándolo después del pecado y de la ruina original, lo restituyó a su primitiva dignidad, quiso darle además el precioso auxilio de abrirle por un medio sobrenatural los tesoros ocultos de su divinidad, de su sabíduría y de su misericordia(1). Pues aunque en la divina revelación se contengan también cosas que no son inaccesibles a la razón humana y que han sido reveladas al hombre, «a fin de que todos puedan conocerlas fácilmente, con firme certeza y sin mezcla de error, no puede decirse por ello, sin embargo, que esta revelación sea necesaria de una manera absoluta, sino porque Dios en su infinita bondad ha destinado al hombre a su fin sobrenatural»(2). «Esta revelación sobrenatural, según la fe de la Iglesia universal», se halla contenida tanto «en las tradiciones no escritas» como «en los libros escritos», llamados sagrados y canónicos porque, «escritos bajo la inspiración del Espíritu Santo, tienen a Dios por autor y en tal concepto han sido dados a la Iglesia»(3). Eso es lo que la Iglesia no ha cesado de pensar ni de profesar públicamente respecto de los libros de uno y otro Testamento. Conocidos son los documentos antiguos e importantísimos en los cuales se afirma que Dios —que habló primeramente por los profetas, después por sí mismo y luego por los apóstoles— nos ha dado también la Escritura que se llama canónica(4), y que no es otra cosa sino los oráculos y las palabras divinas(5), una carta otorgada por el Padre celestial al género humano, en peregrinación fuera de su patria, y transmitida por los autores sagrados(6). Siendo tan grande la excelencia y el valor de las Escrituras, que, teniendo a Dios mismo por autor, contienen la indicación de sus más altos misterios, de sus designios y de sus obras, síguese de aquí que la parte de la teología que se ocupa en la conservación y en la interpretación de estos libros divinos es de suma importancia y de la más grande utilidad.
2. Y así Nos, de la misma manera que hemos procurado, y no sin fruto, gracias a Dios, hacer progresar con frecuentes encíclicas y exhortaciones otras ciencias que nos parecían muy provechosas para el acrecentamiento de la gloria divina y de la salvación de los hombres, así también nos propusimos desde hace mucho tiempo excitar y recomendar este nobilísimo estudio de las Sagradas Letras y dirigirlo de una manera más conforme a las necesidades de los tiempos actuales. Nos mueve, y en cierto modo nos impulsa, la solicitud de nuestro cargo apostólico, no solamente a desear que esta preciosa fuente de la revelación católica esté abierta con la mayor seguridad y amplitud para la utilidad del pueblo cristiano, sino también a no tolerar que sea enturbiada, en ninguna de sus partes, ya por aquellos a quienes mueve una audacia impía y que atacan abiertamente a la Sagrada Escritura, ya por los que suscitan a cada paso novedades engañosas e imprudentes.
3. No ignoramos, ciertamente, venerables hermanos, que no pocos católicos sabios y de talento se dedican con ardor a defender los libros santos o a procurar un mayor conocimiento e inteligencia de los mismos. Pero, alabando a justo título sus trabajos y sus frutos, no podemos dejar de exhortar a los demás cuyo talento, ciencia y piedad prometen en esta obra excelentes resultados, a hacerse dignos del mismo elogio. Queremos ardientemente que sean muchos los que emprendan como conviene la defensa de las Sagradas Letras y se mantengan en ello con constancia; sobre todo, que aquellos que han sido llamados, por la gracia de Dios, a las órdenes sagradas, pongan de día en día mayor cuidado y diligencia en leer, meditar y explicar las Escrituras, pues nada hay más conforme a su estado.
4. Aparte de su importancia y de la reverencia debida a la palabra de Dios, el principal motivo que nos hace tan recomendable el estudio de la Sagrada Escritura son las múltiples ventajas que sabemos han de resultar de ello, según la promesa cierta del Espíritu Santo: «Toda la Escritura, divinamente inspirada, es útil para enseñar, para argüir, para corregir, para instruir en la justicia, a fin de que el hombre de Dios sea perfecto y pronto a toda buena obra»(7). Los ejemplos de Nuestro Señor Jesucristo y de los apóstoles demuestran que con este designio ha dado Dios a los hombres las Escrituras. Jesús mismo, en efecto, que «se ha conciliado la autoridad con los milagros y que ha merecido la fe por su autoridad y ha ganado a la multitud por la fe»(8), tenía costumbre de apelar a la Sagrada Escritura en testimonio de su divina misión. En ocasiones se sirve de los libros santos para declarar que es el enviado de Dios y Dios mismo; de ellos toma argumentos para instruir a sus discípulos y para apoyar su doctrina; defiende sus testimonios contra las calumnias de sus enemigos, los opone a los fariseos y saduceos en sus respuestas y los vuelve contra el mismo Satanás, que atrevidamente le solicitaba; los emplea aun al fin de su vida y, una vez resucitado, los explica a sus discípulos hasta que sube a la gloria de su Padre.
5. Los apóstoles, de acuerdo con la palabra y las enseñanzas del Maestro y aunque El mismo les concedió el don de hacer milagros(9), sacaron de los libros divinos un gran medio de acción para propagar por todas las naciones la sabiduría cristiana, vencer la obstinación de los judíos y sofocar las herejías nacientes. Este hecho resalta en todos sus discursos, y en primer término en los de San Pedro, los cuales tejieron en gran parte de textos del Antiguo Testamento el apoyo más firme de la Nueva Ley. Y lo mismo aparece en los evangelios de San Mateo y San Juan y en las epístolas llamadas Católicas; y de manera clarísima en el testionio de aquel que se gloriaba de haber estudiado la ley de Moisés y los Profetas «a los pies de Gamaliel», para poder decir después con confianza, provisto de armas espirituales: «Las armas de nuestra milicia no son carnales, sino poderosas para con Dios»(10).
6. Que todos, pues, y muy especialmente los soldados de la sagrada milicia, comprendan, por los ejemplos de Cristo y de los apóstoles, en cuánta estimación deben ser tenidas las divinas Letras y con cuánto celo y con qué respeto les es preciso aproximarse a este arsenal. Porque aquellos que deben tratar, sea entre doctos o entre ignorantes, la doctrina de la verdad, en ninguna parte fuera de los libros santos encontrarán enseñanzas más numerosas y más completas sobre Dios, Bien sumo y perfectísimo, y sobre las obras que ponen de manifiesto su gloria y su amor. Acerca del Salvador del género humano, ningún texto tan fecundo y conmovedor como los que se encuentran en toda la Biblia, y por esto ha podido San Jerónimo afirmar con razón «que la ignorancia de las Escrituras es la ignorancia de Cristo»(11), en ellas se ve viva y palpitante su imagen, de la cual se difunde por manera maravillosa el alivio de los males, la exhortación a la virtud y la invitación al amor divino. Y en lo concerniente a la Iglesia, su institución, sus caracteres, su misión v sus dones se encuentran con tanta frecuencia en la Escritura y existen en su favor tantos y tan sólidos argumentos, que el mismo San Jerónimo ha podido decir con mucha razón: «Aquel que se apoya en los testimonios de los libros santos es el baluarte de la Iglesia»(12). Si lo que se busca es algo relacionado con la conformación y disciplina de la vida y de las costumbres, los hombres apostólicos encontrarán en la Biblia grandes y excelentes recursos: prescripciones llenas de santidad, exhortaciones sazonadas de suavidad y de fuerza, notables ejemplos de todas las virtudes, a lo cual se añade, en nombre y con palabras del mismo Dios, la importantísima promesa de las recompensas y el anuncio de las penas para toda la eternidad.
7. Esta virtud propia y singular de las Escrituras, procedente del soplo divino del Espíritu Santo, es la que da autoridad al orador sagrado, le presta libertad apostólica en el hablar y le suministra una elocuencia vigorosa y convincente. El que lleva en su discurso el espíritu y la fuerza de la palabra divina «no habla solamente con la lengua, sino con la virtud del Espíritu Santo y con grande abundancia»(13). Obran, pues, con torpeza e imprevisión los que hablan de la religión y anuncian los preceptos divinos sin invocar apenas otra autoridad que las de la ciencia y de la sabiduria humana, apoyándose más en sus propios argumentos que en los argumentos divinos. Su discurso, aunque brillante, será necesariamente lánguido y frío, como privado que está del fuego de la palabra de Dios(14), y está muy lejos de la virtud que posee el lenguaje divino: «Pues la palabra de Dios es viva y eficaz y más penetrante que una espada de dos filos y llega hasta la división del alma y del espíritu»(15). Aparte de esto, los mismos sabios deben convenir en que existe en las Sagradas Letras una elocuencia admirablemente variada, rica y más digna de los más grandes objetos; esto es lo que San Agustín ha comprendido y perfectamente probado(16) y lo que confirma la experiencia de los mejores oradores sagrados, que han reconocido, con agradecimiento a Dios, que deben su fama a la asidua familiaridad y piadosa meditación de la Biblia.
8. Conociendo a fondo todas estas riquezas en la teoría y en la práctica, los Santos Padres no cesaron de elogiar las Divinas Letras y los frutos que de ellas se pueden obtener. En más de un pasaje de sus obras llaman a los libros santos «riquísimo tesoro de las doctrinas celestiales»(17) y «eterno manantial de salvación»(18), y los comparan a fértiles praderas y a deliciosos jardines, en los que la grey del Señor encuentra una fuerza admirable y un maravilloso encanto(19). Aquí viene bien lo que decía San Jerónimo al clérigo Nepociano: «Lee a menudo las divinas Escrituras; más aún, no se te caiga nunca de las manos la sagrada lectura; aprende lo que debes enseñar…; la predicación del presbítero debe estar sazonada con la lección de las Escrituras»(20), y concuerda la opinión de San Gregorio Magno, que ha descrito como nadie los deberes de los pastores de la Iglesia: «Es necesario —dice— que los que se dedican al ministerio de la predicación no se aparten del estudio de los libros santos»(21).
9. Y aquí nos place recordar este aviso de San Agustín: «No será en lo exterior un verdadero predicador de la palabra de Dios aquel que no la escucha en el interior de sí mismo»(22); y este consejo de San Gregorio a los predicadores sagrados: «que antes de llevar la palabra divina a los otros se examinen a sí mísmos, no sea que, procurando las buenas acciones de los demás, se descuiden de sí propios»(23). Mas esto había ya sido advertido, siguiendo el ejemplo y la enseñanza de Cristo, que empezó a obrar y a enseñar(24), por la voz del Apóstol al dirigirse no solamente a Timoteo, sino a todo el orden de los eclesiásticos con este precepto: «Vela con atención sobre ti y sobre la doctrina, insiste en estas cosas; pues obrando así, te salvarás a ti mismo y salvarás a tus oyentes»(25). Y ciertamente, para la propia y ajena santificación, se encuentran preciosas ayudas en los libros santos, y abundan sobre todo en los Salmos; pero sólo para aquellos que presten a la divina palabra no solamente un espíritu dócil y atento, sino además una perfecta y piadosa disposición de la voluntad. Porque la condición de estos libros no es común, sino que, por haber sido dictados por el mismo Espíritu Santo, contienen verdades muy importantes, ocultas y difíciles de interpretar en muchos puntos; y por ello, para comprenderlos y explicarlos, tenemos siempre necesidad de la presencia de este mismo Espíritu(26), esto es, de su luz y de su gracia, que, como frecuentemente nos advierte la autoridad del divino salmista, deben ser imploradas por medio de la oración humilde y conservadas por la santidad de vida.
10. Y en esto aparece de un modo esplendoroso la previsión de la Iglesia, la cual, «para que este celestial tesoro de los libros sagrados, que el Espíritu Santo entregó a los hombres con soberana liberalidad, no fuera desatendido»(27), ha proveído en todo tiempo con las mejores instituciones y preceptos. Y así estableció no solamente que una gran parte de ellos fuera leída y meditada por todos sus ministros en el oficio diario de la sagrada salmodia, sino que fueran explicados e interpretados por hombres doctos en las catedrales, en los monasterios y en los conventos de regulares donde pudiera prosperar su estudio: y ordenó rigurosamente que los domingos y fiestas solemnes sean alimentados los fieles con las palabras saludables del Evangelio(28). Asimismo, a la prudencia y vigilancia de la Iglesia se debe aquella veneración a la Sagrada Escritura, en todo tiempo floreciente y fecunda en frutos de salvación.
11. Para confirmar nuestros argumentos y nuestras exhortaciones, queremos recordar que todos los hombres notables por la santidad de su vida y por su conocimiento de las cosas divinas, desde los principios de la religión cristiana, han cultivado siempre con asiduidad el estudio de las Sagradas Letras. Vemos que los discípulos más inmediatos de los apóstoles, entre los que citaremos a Clemente de Roma, a Ignacio de Antioquía, a Policarpo, a todos los apologistas, especialmente Justino e Ireneo, para sus cartas y sus libros, destinados ora a la defensa, ora a la propagación de los dogmas divinos, sacaron de las divinas Letras toda su fe, su fuerza y su piedad. En las escuelas catequéticas y teológicas que se fundaron en la jurisdicción de muchas sedes episcopales, y entre las que figuran como más célebres las de Alejandría y Antioquía, la enseñanza que en ellas se daba no consistía, por decirlo así, más que en la lectura, explicación y defensa de la palabra de Dios escrita. De estas aulas salieron la mayor parte de los Santos Padres y escritores, cuyos profundos estudios y notables obras se sucedieron durante tres siglos con tan grande abundancia, que este período fue llamado con razón la Edad de Oro de la exégesis bíblica.
12. Entre los orientales, el primer puesto corresponde a Orígenes, hombre admirable por la rápida concepción de su entendimiento y por la constancia en sus trabajos, en cuyas numerosos escritos y en la inmensa obra de sus Hexaplas puede decirse que se han inspirado casi todos sus sucesores. Entre los muchos que han extendido los límites de esta ciencia es preciso enumerar como los más eminentes: en Alejandría, a Clemente y a Cirilo; en Palestina, a Eusebio y al segundo Cirilo; en Capadocia, a Basilio el Grande y a los dos Gregorios, el Nacianceno y el de Nisa; y en Antioquía, a Juan Crisóstomo, en quien a una notable erudición se unió la más elevada elocuencia.
13. La Iglesia de Occidente no ostenta menores títulos de gloria. Entre los numerosos doctores que se han distinguido en ella, ilustres son los nombres de Tertuliano y de Cipriano, de Hilario y de Ambrosio, de León y Gregorio Magnos; pero sobre todo los de Agustín y de Jerónimo: agudísimo el uno para descubrir el sentido de la palabra de Dios y riquísimo en sacar de ella partido para defender la verdad católica; el otro, por su conocimiento extraordinario de la Biblia y por sus magníficos trabajos sobre los libros santos, ha sido honrado por la Iglesia con el título de Doctor Máximo.
14. Desde esta época hasta el siglo XI, aunque esta clase de estudios no fueron tan ardientes ni tan fructuosamente cultivados como en las épocas precedentes, florecieron bastante, gracias, sobre todo, al celo de los sacerdotes. Estos cuidaron de recoger las obras más provechosas que sus predecesores habían escrito y de propagarlas después de haberlas asimilado y aumentado de su propia cosecha, como hicieron sobre todo Isidoro de Sevilla, Beda y Alcuino; o bien de glosar los manuscritos sagrados, como Valfrido, Estrabón y Anselmo de Luán; o de proveer con procedimientos nuevos a la conservación de los mismos, como hicieron Pedro Damián y Lanfranco.
15. En el siglo XII, muchos emprendieron con gran éxito la explicación alegórica de la Sagrada Escritura; en este género aventajó fácilmente a los demás San Bernardo, cuyos sermones no tienen otro sabor que el de las divinas Letras.
16. Pero también se realizaron nuevos y abundantes progresos gracias al método de los escolásticos. Estos, aunque se dedicaron a investigar la verdadera lección de la versión latina, como lo demuestran los correctorios bíblicos que crearon, pusieron todavía más celo y más cuidado en la interpretación y en la explicación de los libros santos. Tan sabia y claramente como nunca hasta entonces distinguieron los diversos sentidos de las palabras sagradas; fijaron el valor de cada una en materia teológica; anotaron los diferentes capítulos y el argumento de cada una de las partes; investigaron las intenciones de los autores y explicaron la relación y conexión de las distintas frases entre sí; con lo cual todo el mundo ve cuánta luz ha sido llevada a puntos oscuros. Además, tanto sus libros de teología como sus comentarios a la Sagrada Escritura manifiestan la abundancia de doctrina que de ella sacaron. A este título, Santo Tomás se llevó entre todos ellos la palma.
17. Pero desde que nuestro predecesor Clemente V mandó instituir en el Ateneo de Roma y en las más célebres universidades cátedras de literatura orientales, nuestros hombres empezaron a estudiar con más vigor sobre el texto original de la Biblia y sobre la versión latina. Renacida más tarde la cultura griega, y más aún por la invención de la imprenta, el cultivo de la Sagrada Escritura se extendió de un modo extraordinario. Es realmente asombroso en cuán breve espacio de tiempo los ejemplares de los sagrados libros, sobre todo de la Vulgata, multiplicados por la imprenta, llenaron el mundo; de tal modo eran venerados y estimados los divinos libros en la Iglesia.
18. Ni debe omitirse el recuerdo de aquel gran número de hombres doctos, pertenecientes sobre todo a las órdenes religiosas, que desde el concilio de Viena hasta el de Trento trabajaron por la prosperidad de los estudios bíblicos; empleando nuevos métodos y aportando la cosecha de su vasta erudición y de su talento, no sólo acrecentaron las riquezas acumuladas por sus predecesores, sino que prepararon en cierto modo el camino para la gloria del siguiente siglo, en el que, a partir del concilio de Trento, pareció hasta cierto punto haber renacido la época gloriosa de los Padres de la Iglesia. Nadie, en efecto, ignora, y nos agrada recordar, que nuestros predecesores, desde Pío IV a Clemente VIII, prepararon las notables ediciones de las versiones antiguas Vulgata y Alejandrina; que, publicadas después por orden y bajo la autoridad de Sixto V y del mismo Clemente, son hoy día de uso general. Sabido es que en esta época fueron editadas, al mismo tiempo que otras versiones de la Biblia, las poliglotas de Amberes y de París, aptísimas para la investigación del sentido exacto, y que no hay un solo libro de los dos Testamentos que no encontrara entonces más de un intérprete; ni existe cuestión alguna relacionada con este asunto que no ejecitara con fruto el talento de muchos sabios, entre los que cierto número, sobre todo los que estudiaron más a los Santos Padres, adquirieron notable renombre. Ni a partir de esta época ha faltado el celo a nuestros exegetas, ya que hombres distinguidos han merecido bien de estos estudios, y contra los ataques del racionalismo, sacados de la filología y de las ciencias afines, han defendido la Sagrada Escritura sirviéndose de argumentos del mismo género.
19. Todos los que sin prevenciones examinen esta rápida reseña nos concederán ciertamente que la Iglesia no ha perdonado recurso alguno para hacer llegar hasta sus hijos las fuentes saludables de la Divina Escritura; que siempre ha conservado este auxilio, para cuya guarda ha sido propuesta por Dios, y que lo ha reforzado con toda clase de estudios, de tal modo que no ha tenido jamás, ni tiene ahora, necesidad de estímulos por parte de los extraños.
20. El plan que hemos propuesto exige que comuniquemos con vosotros, venerables hermanos, lo que estimamos oportuno para la buena ordenación de estos estudios. Pero importa ante todo examinar qué clase de enemigos tenemos enfrente y en qué procedimientos o en qué armas tienen puesta su confianza.
21. Como antiguamente hubo que habérselas con los que, apoyándose en su juicio particular y recurriendo a las divinas tradiciones y al magisterio de la Iglesia, afirmaban que la Escritura era la única fuente de revelación y el juez supremo de la fe; así ahora nuestros principales adversarios son los racionalistas, que, hijos y herederos, por decirlo así, de aquéllos y fundándose igualmente en su propia opinión, rechazan abiertamente aun aquellos restos de fe cristiana recibidos de sus padres. Ellos niegan, en efecto, toda divina revelación o inspiración; niegan la Sagrada Escritura; proclaman que todas estas cosas no son sino invenciones y artificios de los hombres; miran a los libros santos, no como el relato fiel de acontecimientos reales, sino como fábulas ineptas y falsas historias. A sus ojos no han existido profecías, sino predicciones forjadas después de haber ocurrido los hechos, o presentimientos explicables por causas naturales; para ellos no existen milagros verdaderamente dignos de este nombre, manifestaciones de la omnipotencia divina, sino hechos asombrosos, en ningún modo superiores a las fuerzas de la naturaleza, o bien ilusiones y mitos; los evangelios y los escritos de los apóstoles han de ser atribuidos a otros autores.
22. Presentan este cúmulo de errores, con los que creen poder anonadar a la sacrosanta verdad de los libros divinos, como veredictos inapelables de una nueva ciencia libre; pero que tienen ellos mismos por tan inciertos, que con frecuencia varían y se contradicen en unas mismas cosas. Y mientras juzgan y hablan de una manera tan impía respecto de Dios, de Cristo, del Evangelio y del resto de las Escrituras, no faltan entre ellos quienes quisieran ser considerados como teólogos, como cristianos y como evangélicos, y que bajo un nombre honrosísimo ocultan la temeridad de un espíritu insolente. A estos tales se juntan, participando de sus ideas y ayudándolos, otros muchos de otras disciplinas, a quienes la misma intolerancia de las cosas reveladas impulsa del mismo modo a atacar a la Biblia. Nos no sabríamos deplorar demasiado la extensión y la violencia que de día en día adquieren estos ataques. Se dirigen contra hombres instruidos y serios que pueden defenderse sin gran dificultad; pero se ceban principalmente en la multitud de los ignorantes, como enemigos encarnizados de manera sistemática. Por medio de libros, de opúsculos y de periódicos propagan el veneno mortífero; lo insinúan en reuniones y discursos; todo lo han invadido, y poseen numerosas escuelas arrancadas a la tutela de la Iglesia, en las que depravan miserablemente, hasta por medio de sátiras y burlas chocarreras, las inteligencias aún tiernas y crédulas de los jóvenes, excitando en ellos el desprecio hacia la Sagrada Escritura.
23. En todo esto hay, venerables hermanos, hartos motivos para excitar y animar el celo común de los pastores, de tal modo que a esa ciencia nueva, a esa falsa ciencia(29), se oponga la doctrina antigua y verdadera que la Iglesia ha recibido de Cristo por medio de los apóstoles y surjan hábiles defensores de la Sagrada Escritura para este duro combate.
24. Nuestro primer cuidado, por lo tanto, debe ser éste: que en los seminarios y en las universidades se enseñen las Divinas Letras punto por punto, como lo piden la misma importancia de esta ciencia y las necesidades de la época actual. Por esta razón, nada debéis cuidar tanto como la prudente elección de los profesores; para este cometido importa efectivamente nombrar, no a personas vulgares, sino a los que se recomienden por un grande amor y una larga práctica de la Biblia, por una verdadera cultura científica y, en una palabra, por hallarse a la altura de su misión. No exige menos cuidado la tarea de procurar quienes después ocupen el puesto de éstos. Será conveniente que, allí donde haya facilidad para ello, se escoja, entre los alumnos mejores que hayan cursado de manera satisfactoria los estudios teológicos, algunos que se dediquen por completo a los libros divinos con la posibilidad de cursar en algún tiempo estudios superiores. Cuando los profesores hayan sido elegidos y formados de este modo, ya pueden emprender con confianza la tarea que se les encomienda; y para que mejor la lleven y obtengan los resultados que son de esperar, queremos darles algunas instrucciones más detalladas.
25. Al comienzo de los estudios deben atender al grado de inteligencia de los discípulos, para formar y cultivar en ellos un criterio, apto al mismo tiempo para defender los libros divinos y para captar su sentido. Tal es el objeto del tratado de la introducción bíblica, que suministra al discípulo recursos; para demostrar la integridad y autoridad de la Biblia, para buscar y descubrir su verdadero sentido y para atacar de frente las interpretaciones sofísticas, extirpándolas en su raíz. Apenas hay necesidad de indicar cuán importante es discutir estos puntos desde el principio, con orden, científicamente y recurriendo a la teología; pues todo el restante estudio de la Escritura se apoya en estas bases y se ilumina con estos resplandores.
26. El profesor debe aplicarse con gran cuidado a dar a conocer a fondo la parte más fecunda de esta ciencia, que concierne a la interpretación, y para que sus oyentes sepan de qué modo podrán utilizar las riquezas de la palabra divina en beneficio de la religión y de la piedad. Comprendemos ciertamente que ni la extensión de la materia ni el tiempo de que se dispone permiten recorrer en las aulas todas las Escrituras. Pero, toda vez que es necesario poseer un método seguro para dirigir con fruto su interpretación, un maestro prudente deberá evitar al mismo tiempo el defecto de los que hacen gustar deprisa algo de todos los libros, y el defecto de aquellos otros que se detienen en una parte determinada más de la cuenta. Si en la mayor parte de las escuelas no se puede conseguir, como en las academias superiores, que este o aquel libro sea explicado de una manera continua y extensa, cuando menos se ha de procurar que los pasajes escogidos para la interpretación sean estudiados de un modo suficiente y completo; los discípulos, atraídos e instruidos por este módulo de explicación, podrán luego releer y gustar el resto de la Biblia durante toda su vida.
27. El profesor, fiel a las prescripciones de aquellos que nos precedieron, deberá emplear para esto la versión Vulgata, la cual el concilio Tridentino decretó que había de ser tenida «como auténtica en las lecturas públicas, en las discusiones, en las predicaciones y en las explicaciones»(30), y la recomienda también la práctica cotidiana de la Iglesia. No queremos decir, sin embargo, que no se hayan de tener en cuenta las demás versiones que alabó y empleó la antigüedad cristiana, y sobre todo los textos primitivos. Pues si en lo que se refiere a los principales puntos el pensamiento del hebreo y del griego está suficientemente claro en estas palabras de la Vulgata, no obstante, si algún pasaje pesulta ambiguo o menos claro en ella, «el recurso a la lengua precedente» será, siguiendo el consejo de San Agustín, utilísimo(31). Claro es que será preciso proceder con mucha circunspección en esta tarea; pues el oficio «del comentador es exponer, no lo que él mismo piensa, sino lo que pensaba el autor cuyo texto explica»(32).
28. Después de establecida por todos los medios, cuando sea preciso, la verdadera lección, habrá llegado el momento de escudriñar y explicar su sentido. Nuestro primer consejo acerca de este punto es que observen las normas que están en uso respecto de la interpretación, con tanto más cuidado cuanto el ataque de nuestros adversarios es sobre este particular más vivo. Por eso, al cuidado de valorar las palabras en sí mismas, la significación de su contexto, los lugares paralelos, etc., deben unirse también la ilustración de la erudición conveniente; con cautela, sin embargo, para no emplear más tiempo ni más esfuerzo en estas cuestiones que en el estudio de los libros santos y para evitar que un conocimiento demasiado extenso y profundo de tales cosas lleve al espíritu de la juventud más turbación que ayuda.
29. De aquí se pasará con seguridad al uso de la Sagrada Escritura en materia teológica. Conviene hacer notar a este respecto que a las otras causas de dificultad que se presentan para entender cualquier libro de autores antiguos se añaden algunas particularidades en los libros sagrados. En sus palabras, por obra del Espíritu Santo, se oculta gran número de verdades que sobrepujan en mucho la fuerza y la penetración de la razón humana, como son los divinos misterios y otras muchas cosas que con ellos se relacionan: su sentido es a veces más amplio y más recóndito de lo que parece expresar la letra e indican las reglas de la hermenéutica; además, su sentido literal oculta en sí mismo otros significados que sirven unas veces para ilustrar los dogmas y otras para inculcar preceptos de vida; por lo cual no puede negarse que los libros sagrados se hallan envueltos en cierta oscuridad religiosa, de manera que nadie puede sin guía penetrar en ellos(33). Dios lo ha querido así (ésta es la opinión de los Santos Padres) para que los hombres los estudien con más atención y cuidado, para que las verdades más penosamente adquiridas penetren más profundamente en su corazón y para que ellos comprendan sobre todo que Dios ha dado a la Iglesia las Escrituras a fin de que la tengan por guía y maestra en la lectura e interpretación de sus palabras. Ya San Ireneo enseñó(34) que, allí donde Dios ha puesto sus carismas, debe buscarse la verdad, y que aquellos en quienes reside la sucesión de los apóstoles explican las Escrituras sin ningún peligro de error: ésta es su doctrina y la doctrina de los demás Santos Padres, que adoptó el concilio Vaticano cuando, renovando el decreto tridentino sobre la interpretación de la palabra divina escrita, declaró ser la mente de éste que «en las cosas de fe y costumbres que se refieren a la edificación de la doctrina cristiana ha de ser tenido por verdadero sentido de la Escritura Sagrada aquel que tuvo y tiene la santa madre Iglesia, a la cual corresponde juzgar del verdadero sentido e interpretación de las Santas Escrituras; y, por lo tanto, que a nadie es lícito interpretar dicha Sagrada Escritura contra tal sentido o contra el consentimiento unánime de los Padres»(35).
30. Por esta ley, llena de prudencia, la Iglesia no detiene ni coarta las investigaciones de la ciencia bíblica, sino más bien las mantiene al ábrigo de todo error y contribuye poderosamente a su verdadero progreso. Queda abierto al doctor un vasto campo en el que con paso seguro pueda ejercitar su celo de intérprete de manera notable y con provecho para la Iglesia. Porque en aquellos pasajes de la Sagrada Escritura que todavía esperan una explicación cierta y bien definida, puede acontecer, por benévolo designio de la providencia de Dios, que con este estudio preparatorio llegue a madurar; y, en los puntos ya definidos, el doctor privado puede también desempeñar un papel útil si los explica con más claridad a la muchedumbre de los fieles o más científicamente a los doctos, o si los defiende con energía contra los adversarios de la fe. El intérprete católico debe, pues, mirar como un deber importantísimo y sagrado explicar en el sentido declarado los textos de la Escritura cuya significación haya sido declarada auténticamente, sea por los autores sagrados, a quienes les ha guiado la inspiración del Espíritu Santo —como sucede en muchos pasajes del Nuevo Testarnento—, sea por la Iglesia, asistida también por el mismo Espíritu Santo «en juicio solemne o por su magisterio universal y ordinario»(36), y llevar al convencimiento de que esta interpretación es la única que, conforme a las leyes de una sana hermenéutica, puede aceptarse. En los demás puntos deberá seguir la analogía de la fe y tomar como norma suprema la doctrina católica tal como está decidida por la autoridad de la Iglesía; porque, siendo el mismo Dios el autor de los libros santos y de la doctrina que la Iglesia tiene en depósito, no puede suceder que proceda de una legítima interpretación de aquéllos un sentido que discrepe en alguna manera de ésta. De donde resulta que se debe rechazar como insensata y falsa toda explicación que ponga a los autores sagrados en contradicción entre sí o que sea opuesta a la enseñanza de la Iglesia.
31. El maestro de Sagrada Escritura debe también merecer este elogio: que posee a fondo toda la teología y que conoce perfectamente los comentarios de los Santos Padres, de los doctores y de los mejores intérpretes. Tal es la doctrina de San Jerónimo(37) y de San Agustín, quien se queja, con razón, en estos términos: «Si toda ciencia, por poco importante que sea y fácil de adquirir, pide ser enseñada por un doctor o maestro, ¡qué cosa más orgullosamente temeraria que no querer aprender de sus intérpretes los libros de los divinos misterios!»(38). Igualmente pensaron otros Santos Padres y lo confirmaron con su ejemplo «al procurar la inteligencia de las divinas Escrituras no por su propia presunción, sino según los escritos y la autoridad de sus predecesores, que sabían haber recibido, por sucesión de los apóstoles, las reglas para su interpretación»(39).
32. La autoridad de los Santos Padres, que después de los apóstoles «hicieron crecer a la Iglesia con sus esfuerzos de jardineros, constructores, pastores y nutricios»(40), es suprema cuando explican unánimemente un texto bíblico como perteneciente a la doctrina de la fe y de las costumbres; pues de su conformidad resulta claramente, según la doctrina católica, que dicha explicación ha sido recibida por tradición de los apóstoles. La opinión de estos mismos Padres es también muy estimable cuando tratan de estas cosas como doctores privados; pues no solamente su ciencia de la doctrina revelada y su conocimiento de muchas cosas de gran utilidad para interpretar los libros apostólicos los recomiendan, sino que Dios mismo ha prodigado los auxilios abundantes de sus luces a estos hombres notabilísimos por la santidad de su vida y por su celo por la verdad. Que el intérprete sepa, por lo tanto, que debe seguir sus pasos con respeto y aprovecharse de sus trabajos mediante una elección inteligente.
33. No es preciso, sin embargo, creer que tiene cerrado el camino para no ir más lejos en sus pesquisas y en sus explicaciones cuando un motivo razonable exista para ello, con tal que siga religiosamente el sabio precepto dado por San Agustín: «No apartarse en nada del sentido literal y obvio, como no tenga alguna razón que le impida ajustarse a él o que haga necesario abandonarlo»(41); regla que debe observarse con tanta más firmeza cuanto existe un mayor peligro de engañarse en medio de tanto deseo de novedades y de tal libertad de opiniones. Procure asimismo no descuidar lo que los Santos Padres entendieron en sentido alegórico o parecido, sobre todo cuando este significado derive del sentido literal y se apoye en gran número de autoridades. La Iglesia ha recibido de los apóstoles este método de interpretación y lo ha aprobado con su ejemplo, como se ve en la liturgia; no que los Santos Padres hayan pretendido demostrar con ello propiamente los dogmas de la fe, sino que sabían por experiencia que este método era bueno para alimentar la virtud y la piedad.
34. La autoridad de los demás intérpretes católicos es, en verdad, menor; pero, toda vez que los estudios bíblicos han hecho en la Iglesia continuos progresos, es preciso dar el honor que les corresponde a los comentarios de estos doctores, de los cuales se pueden tomar muchos argumentos para rechazar los ataques y esclarecer los puntos difíciles. Pero lo que no conviene en modo alguno es que, ignorando o despreciando las excelentes obras que los nuestros nos dejaron en gran número, prefiera el intérprete los libros de los heterodoxos y busque en ellos, con gran peligro de la sana doctrina y muy frecuentemente con detrimento de la fe, la explicación de pasajes en los que los católicos vienen ejercitando su talento y multiplicando sus esfuerzos desde hace mucho tiempo y con éxito. Pues aunque, en efecto, los estudios de los heterodoxos, prudentemente utilizados, puedan a veces ayudar al intérprete católico, importa, no obstante, a éste recordar que, según numerosos testimonios de nuestros mayores(42), el sentido incorrupto de las Sagradas Letras no se encuentra fuera de la Iglesia y no puede ser enseñado por los que, privados de la verdad de la fe, no llegan hasta la médula de las Escrituras, sino que únicamente roen su corteza(43).
35. Es muy de desear y necesario que el uso de la divina Escritura influya en toda la teología y sea como su alma; tal ha sido en todos los tiempos la doctrina y la práctica de todos los Padres y de los teólogos más notables. Ellos se esforzaban por establecer y afirmar sobre los libros santos las verdades que son objeto de la fe y las que de éste se derivan; y de los libros sagrados y de la tradición divina se sirvieron para refutar las novedades inventadas por los herejes y para encontrar la razón de ser, la explicación y la relación que existe entre los dogmas católicos. Nada tiene esto de sorprendente para el que reflexione sobre el lugar tan importante que corresponde a los libros divinos entre las fuentes de la revelación, hasta el punto de que sin su estudio y uso diario no podría la teología ser tratada con el honor y dignidad que le son propios. Porque, aunque deban los jóvenes ejercitarse en las universidades y seminarios de manera que adquieran la inteligencia y la ciencia de los dogmas deduciendo de los artículos de la fe unas verdades de otras, según las reglas de una filosofía experimentada y sólida, no obstante, el teólogo profundo e instruido no puede descuidar la demostración de los dogmas basada en la autoridad de la Biblia. «Porque la teología no toma sus argumentos de las demás ciencias, sino inmediatamente de Dios por la revelación. Por lo tanto, nada recibe de esas ciencias como si le fueran superiores, sino que las emplea como a sus inferiores y seguidoras». Este método de enseñanza de la ciencia sagrada está indicado y recomendado por el príncipe de los teólogos, Santo Tomás de Aquino(44), el cual, además, como perfecto conocedor de este peculiar carácter de la teología cristiana, enseña de qué manera el teólogo puede defender estos principios si alguien los ataca: «Argumentando, si el adversario concede algunas de las verdades que tenemos por revelación; y en este sentido disputamos contra los herejes aduciendo las autoridades de la Escritura o empleando un artículo de la fe contra los que niegan otro. Por el contrario, si el adversario no cree en nada revelado, no nos queda recurso para probar los artículos de la fe con razones, sino sólo para deshacer las que él proponga contra la fe»(45).
36. Hay que poner, por lo tanto, especial cuidado en que los jóvenes acometan los estudios bíblicos convenientemente instruidos y pertrechados, para que no defrauden nuestras legítimas esperanzas ni, lo que sería más grave, sucumban incautamente ante el error, engañados por las falacias de los racionalistas y por el fantasma de una erudición superficial. Estarán perfectamente preparados si, con arreglo al método que Nos mismo les hemos enseñado y prescrito, cultivan religiosamente y con profundidad el estudio de la filosofia y de la teología bajo la dirección del mismo Santo Tomás. De este modo procederán con paso firme y harán grandes progresos en las ciencias bíblicas como en la parte de la teología llamada positiva.
37. Haber demostrado, explicado y aclarado la verdad de la doctrina católica mediante la interpretación legítima y diligente de los libros sagrados es mucho ciertamente; resta, sin embargo, otro punto que fijar y tan importante como laborioso: el de afirmar con la mayor solidez la autoridad íntegra de los mismos. Lo cual no podrá conseguirse plena y enteramente sino por el magisterio vivo y propio de la Iglesia, que «por sí misma y a causa de su admirable difusión, de su eminente santidad, de su fecundidad inagotable en toda suerte de bienes, de su unidad católica, de su estabilidad invencible, es un grande y perpetuo motivo de credibilidad y una prueba irrefutable de su divina misión»(46). Pero toda vez que este divino e infalible magisterio de la Iglesia descansa también en la autoridad de la Sagrada Escritura, es preciso afirmar y reivindicar la fe, cuando menos, en la Biblia, por cuyos libros, como testimonios fidedignos de la antigüedad, serán puestas de manifiesto y debidamente establecidas la divinidad y la misión de Jesucristo, la institución de la jerarquía de la Iglesia y la primacía conferida a Pedro y a sus sucesores.
38. A este fin será muy conveniente que se multipliquen los sacerdotes preparados, dispuestos a combatir en este campo por la fe y a rechazar los ataques del enemigo, revestidos de la armadura de Dios, que recomienda el Apóstol(47), y entrenados en las nuevas armas y en la nueva estrategia de sus adversarios. Es lo que hermosamente incluye San Juan Crisóstomo entre los deberes del sacerdote: «Es preciso —dice— emplear un gran celo a fin de que la palabra de Dios habite con abundancia en nosotros(48); no debemos, pues, estar preparados para un solo género de combate, porque no todos usan las mismas armas ni tratan de acometernos de igual manera. Es, por lo tanto, necesario que quien ha de medirse con todos, conozca las armas y los procedimientos de todos y sepa ser a la vez arquero y hondero, tribuno y jefe de cohorte, general y soldado, infante y caballero, apto para luchar en el mar y para derribar murallas; porque, si no conoce todos los medios de combatir, el diablo sabe, introduciendo a sus raptores por un solo punto en el caso de que uno solo quedare sin defensa, arrebatar las ovejas»(49). Más arriba hemos mencionado las astucias de los enemigos y los múltiples medios que emplean en el ataque. Indiquemos ahora los procedimientos que deben utilizarse para la defensa.
39. Uno de ellos es, en primer término, el estudio de las antiguas lenguas orientales y, al mismo tiempo, el de la ciencia que se llama crítica. Siendo estos dos conocimientos en el día de hoy muy apreciados y estimados, el clero que los posea con más o menos profundidad, según el país en que se encuentre y los hombres con quienes esté en relación, podrá mejor mantener su dignidad y cumplir con los deberes de su cargo, ya que debe hacerse todo para todos(50) y estar siempre pronto a satisfacer a todo aguel que le pida la razón de su esperanzas(51). Es, pues, necesario a los profesores de Sagrada Escritura, y conviene a los teólogos, conocer las lenguas en las que los libros canónicos fueron originariamente escritos por los autores sagrados; sería también excelente que los seminaristas cultivasen dichas lenguas, sobre todo aquellos que aspiran a los grados académicos en teología. Debe también procurarse que en todas las academias, como ya se ha hecho laudablemente en muchas, se establezcan cátedras donde se enseñen también las demás lenguas antiguas, sobre todo las semíticas, y las materias relacionadas con ellas, con vistas, sobre todo, a los jóvenes que se preparan para profesores de Sagradas Letras.
40. Importa también, por la misma razón, que los susodichos profesores de Sagrada Escritura se instruyan y ejerciten más en la ciencia de la verdadera crítica; porque, desgraciadamente, y con gran daño para la religión, se ha introducido un sistema que se adorna con el nombre respetable de «alta crítica», y según el cual el origen, la integridad y la autoridad de todo libro deben ser establecidos solamente atendiendo a lo que ellos llaman razones internas. Por el contrario, es evidente que, cuando se trata de una cuestión histórica, como es el origen y conservación de una obra cualquiera, los testimonios históricos tienen más valor que todos los demás y deben ser buscados y examinados con el máximo interés; las razones internas, por el contrario, la mayoría de las veces no merecen la pena de ser invocadas sino, a lo más, como confirmación. De otro modo, surgirán graves inconvenientes: los enemigos de la religión atacarán la autenticidad de los libros sagrados con más confianza de abrir brecha; este género de «alta crítica» que preconizan conducirá en definitiva a que cada uno en la interpretación se atenga a sus gustos y a sus prejuicios; de este modo, la luz que se busca en las Escrituras no se hará, y ninguna ventaja reportará la ciencia; antes bien se pondrá de manifiesto esa nota característica del error que consiste en la diversidad y disentimiento de las opiniones, como lo están demostrando los corifeos de esta nueva ciencia; y como la mayor parte están imbuidos en las máximas de una vana filosofía y del racionalismo, no temerán descartar de los sagrados libros las profecías, los milagros y todos los demás hechos que traspasen el orden natural.
41. Hay que luchar en segundo lugar contra aquellos que, abusando de sus conocimientos de las ciencias físicas, siguen paso a paso a los autores sagrados para echarles en cara su ignorancia en estas cosas y desacreditar así las mismas Escrituras. Como quiera que estos ataques se fundan en cosas que entran en los sentidos, son peligrosísimos cuando se esparcen en la multitud, sobre todo entre la juventud dedicada a las letras; la cual, una vez que haya perdido sobre algún punto el respeto a la revelación divina, no tardará en abandonar la fe en todo lo demás. Porque es demasiado evidente que así como las ciencias naturales, con tal de que sean convenientemente enseñadas, son aptas para manifestar la gloria del Artífice supremo, impresa en las criaturas, de igual modo son capaces de arrancar del alma los principios de una sana filosofía y de corromper las costumbres cuando se infiltran con dañadas intenciones en las jóvenes inteligencias. Por eso, el conocimiento de las cosas naturales será una ayuda eficaz para el que enseña la Sagrada Escritura; gracias a él podrá más fácilmente descubrir y refutar los sofistas de esta clase dirigidos contra los libros sagrados.
42. No habrá ningún desacuerdo real entre el teólogo y el físico mientras ambos se mantengan en sus límites, cuidando, según la frase de San Agustín, «de no afirmar nada al azar y de no dar por conocido lo desconocido»(52). Sobre cómo ha de portarse el teólogo si, a pesar de esto, surgiere discrepancia, hay una regla sumariamente indicada por el mismo Doctor: «Todo lo que en materia de sucesos naturales pueden demostrarnos con razones verdaderas, probémosles que no es contrario a nuestras Escrituras; mas lo que saquen de sus libros contrario a nuestras Sagrada Letras, es decir, a la fe católica, demostrémosles, en lo posible o, por lo menos, creamos firmemente que es falsísimo»(53). Para penetrarnos bien de la justicia de esta regla, se ha de considerar en primer lugar que los escritores sagrados, o mejor el Espíritu Santo, que hablaba por ellos, no quisieron enseñar a los hombres estas cosas (la íntima naturaleza o constitución de las cosas que se ven), puesto que en nada les habían de servir para su salvación(54), y así, más que intentar en sentido propio la exploración de la naturaleza, describen y tratan a veces las mismas cosas, o en sentido figurado o según la manera de hablar en aquellos tiempos, que aún hoy vige para muchas cosas en la vida cotidiana hasta entre los hombres más cultos. Y como en la manera vulgar de expresarnos suele ante todo destacar lo que cae bajo los sentidos, de igual modo el escritor sagrado —y ya lo advirtió el Doctor Angélico— «se guía por lo que aparece sensiblemente»(55), que es lo que el mismo Dios, al hablar a los hombres, quiso hacer a la manera humana para ser entendido por ellos.
43. Pero de que sea preciso defender vigorosamente la Santa Escritura no se sigue que sea necesario mantener igualmente todas las opiniones que cada uno de los Padres o de los intérpretes posteriores han sostenido al explicar estas mismas Escrituras; los cuales, al exponer los pasajes que tratan de cosas físicas, tal vez no han juzgado siempre según la verdad, hasta el punto de emitir ciertos principios que hoy no pueden ser aprobados. Por lo cual es preciso descubrir con cuidado en sus explicaciones aquello que dan como concerniente a la fe o como ligado con ella y aquello que afirman con consentimiento unánime; porque, «en las cosas que no son de necesidad de fe, los santos han podido tener pareceres diferentes, lo mismo que nosotros», según dice Santo Tomás(56). El cual, en otro pasaje, dice con la mayor prudencia: «Por lo que concierne a las opiniones que los filósofos han profesado comúnmente y que no son contrarias a nuestra fe, me parece más seguro no afirmarlas como dogmas, aunque algunas veces se introduzcan bajo el nombre de filósofos, ni rechazarlas como contrarias a la fe, para no dar a los sabios de este mundo ocasión de despreciar nuestra doctrina»(57). Pues, aunque el intérprete debe demostrar que las verdades que los estudiosos de las ciencias físicas dan como ciertas y apoyadas en firmes argumentos no contradicen a la Escritura bien explicada, no debe olvidar, sin embargo, que algunas de estas verdades, dadas también como ciertas, han sido luego puestas en duda y rechazadas. Que si los escritores que tratan de los hechos físicos, traspasados los linderos de su ciencia, invaden con opiniones nocivas el campo de la filosofía, el intérprete teólogo deje a cargo de los filósofos el cuidado de refutarlas.
44. Esto mismo habrá de aplicarse después a las ciencias similares, especialmente a la historia. Es de sentir, en efecto, que muchos hombres que estudian a fondo los monumentos de la antigüedad, las costumbres y las instituciones de los pueblos, investigan y publican con grandes esfuerzos los correspondientes documentos, pero frecuentemente con objeto de encontrar errores en los libros santos para debilitar y quebrantar completamente su autoridad. Algunos obran así con demasiada hostilidad y sin bastante equilibrio, ya que se fian de los libros profanos y de los documentos del pasado como si no pudiese existir ninguna sospecha de error respecto a ellos, mientras niegan, por lo menos, igual fe a los libros de la Escritura ante la más leve sospecha de error y sin pararse siquiera a discutirla.
45. Puede ocurrir que en la transcripción de los códices se les escaparan a los copistas algunas erratas; lo cual debe estudiarse con cuidado y no admitirse fácilmente sino en los lugares que con todo rigor haya sido demostrado; también puede suceder que el sentido verdadero de algunas frases continúe dudoso; para determinarlo, las reglas de la interpretación serán de gran auxilio; pero lo que de ninguna manera puede hacerse es limitar la inspiración a solas algunas partes de las Escrituras o conceder que el autor sagrado haya cometido error. Ni se debe tolerar el proceder de los que tratan de evadir estas dificultades concediendo que la divina inspiración se limita a las cosas de fe y costumbres y nada más, porque piensan equivocadamente que, cuando se trata de la verdad de las sentencias, no es preciso buscar principalmente lo que ha dicho Dios, sino examinar más bien el fin para el cual lo ha dicho. En efecto, los libros que la Iglesia ha recibido como sagrados y canónicos, todos e íntegramente, en todas sus partes, han sido escritos bajo la inspiración del Espíritu Santo; y está tan lejos de la divina inspiración el admitir error, que ella por sí misma no solamente lo excluye en absoluto, sino que lo excluye y rechaza con la misma necesidad con que es necesario que Dios, Verdad suma, no sea autor de ningún error.
46. Tal es la antigua y constante creencia de la Iglesia definida solemnemente por los concilios de Florencia y de Trento, confirmada por fin y más expresamente declarada en el concilio Vaticano, que dio este decreto absoluto: «Los libros del Antigo y del Nuevo Testamento, íntegros, con todas sus partes, como se describen en el decreto del mismo concilio (Tridentino) y se contienen en la antigua versión latina Vulgata, deben ser recibidos por sagrados y canónicos. La Iglesia los tiene por sagrados y canónicos, no porque, habiendo sido escritos por la sola industria humana, hayan sido después aprobados por su autoridad, ni sólo porque contengan la revelación sin error, sino porque, habiendo sido escritos por inspiración del Espíritu Santo, tienen a Dios por autor»(58). Por lo cual nada importa que el Espíritu Santo se haya servido de hombres como de instrumentos para escribir, como si a estos escritores inspirados, ya que no al autor principal, se les pudiera haber deslizado algún error. Porque El de tal manera los excitó y movió con su influjo sobrenatural para que escribieran, de tal manera los asistió mientras escribían, que ellos concibieran rectamente todo y sólo lo que El quería, y lo quisieran fielmente escribir, y lo expresaran aptamente con verdad infalible; de otra manera, El no sería el autor de toda la Sagrada Escritura.
47. Tal ha sido siempre el sentir de los Santos Padres. «Y así —dice San Agustín—, puesto que éstos han escrito lo que el Espíritu Santo les ha mostrado y les ha dicho, no debe decirse que no lo ha escrito El mismo, ya que, como miembros, han ejecutado lo que la cabeza les dictaba»(59). Y San Gregorio Magno dice: «Es inútil preguntar quién ha escrito esto, puesto que se cree firmemente que el autor del libro es el Espíritu Santo; ha escrito, en efecto, el que dictó lo que se había de escribir; ha escrito quien ha inspirado la obra»(60). Síguese que quienes piensen que en los lugares auténticos de los libros sagrados puede haber algo de falso, o destruyen el concepto católico de inspiración divina, o hacen al mismo Dios autor del error.
48. Y de tal manera estaban todos los Padres y Doctores persuadidos de que las divinas Letras, tales cuales salieron de manos de los hagiógrafos, eran inmunes de todo error, que por ello se esforzaron, no menos sutil que religiosamente, en componer entre sí y conciliar los no pocos pasajes que presentan contradicciones o desemejanzas (y que son casi los mismos que hoy son presentados en nombre de la nueva ciencia); unánimes en afirmar que dichos libros, en su totalidad y en cada una de sus partes, procedían por igual de la inspiración divina, y que el mismo Dios, hablando por los autores sagrados, nada podía decir ajeno a la verdad. Valga por todos lo que el mismo Agustín escribe a Jerónimo: «Yo confieso a vuestra caridad que he aprendido a dispensar a solos los libros de la Escritura que se llaman canónicos la reverencia y el honor de creer muy firmemente que ninguno de sus autores ha podido cometer un error al escribirlos. Y si yo encontrase en estas letras algo que me pareciese contrario a la verdad, no vacilaría en afirmar o que el manuscrito es defectuoso, o que el traductor no entendió exactamente el texto, o que no lo he entendido yo»(61).
49. Pero luchar plena y perfectamente con el empleo de tan importantes ciencias para establecer la santidad de la Biblia, es algo superior a lo que de la sola erudición de los intérpretes y de los teólogos se puede esperar. Es de desear, por lo tanto, que se propongan el mismo objeto y se esfuercen por lograrlo todos los católicos que hayan adquirido alguna autoridad en las ciencias profanas. El prestigio de estos ingenios, si nunca hasta el presente, tampoco hoy falta a la Iglesia, gracias a Dios, y ojalá vaya en aumento para ayuda de la fe. Consideramos de la mayor importancia que la verdad encuentre más numerosos y sólidos defensores que adversarios, pues no hay cosa que tanto pueda persuadir al vulgo a aceptar la verdad como el ver a hombres distinguidos en alguna ciencia profesarla abiertamente. Incluso la envidia de los detractores se desvanecerá fácilmente, o al menos no se atreverán ya a afirmar con tanta petulancia que la fe es enemiga de la ciencia, cuando vean a hombres doctos rendir el mayor honor y la máxima reverencia a la fe.
50. Puesto que tanto provecho pueden prestar a la religión aquellos a quienes la Providencia concedió, junto con la gracia de profesar la fe católica, el feliz don del talento, es preciso que, en medio de esta lucha violenta de los estudios que se refieren en alguna manera a las Escrituras, cada uno de ellos elija la disciplina apropiada y, sobresaliendo en ella, se aplique a rechazar victoriosamente los dardos que la ciencia impía dirige contra aquéllas.
51. Aquí nos es grato tributar las merecidas alabanzas a la conducta de algunos católicos, quienes, a fin de que los sabios puedan entregarse con toda abundancia de medios a estos estudios y hacerlos progresar formando asociaciones, gustan de contribuir generosamente con recursos económicos. Excelente manera de emplear su dinero y muy apropiada a las necesidades de los tiempos. En efecto, cuantos menos socorros pueden los católicos esperar del Estado para sus estudios, más conviene que la liberalidad privada se muestre pronta y abundante; de modo que aquellos a quienes Dios ha dado riquezas, las consagren a conservar el tesoro de la verdad revelada.
52. Mas, para que tales trabajos aprovechen verdaderamente a las ciencias bíblicas, los hombres doctos deben apoyarse en los principios que dejamos indicados más arriba; sostengan con firmeza que un mismo Dios es el creador y gobernador de todas las cosas y el autor de las Escrituras, y que, por lo tanto, nada puede deducirse de la naturaleza de las cosas ni de los monumentos de la historia que contradiga realmente a las Escrituras. Y si tal pareciese, ha de demostrarse lo contrario, bien sometiendo al juicio prudente de teólogos y exegetas cuál sea el sentido verdadero o verosímil del lugar de la Escritura que se objeta, bien examinando con mayor diligencia la fuerza de los argumentos que se aducen en contra. Ni hay que darse por vencidos si aun entonces queda alguna apariencia en contrario, porque, no pudiendo de manera alguna la verdad oponerse a la verdad, necesariamente ha de estar equivocada o la intepretación que se da a las palabras sagradas o la parte contraria; si ni lo uno ni lo otro apareciese claro, suspendamos el juicio de momento. Muchas acusaciones de todo género se han venido lanzando contra la Escritura durante largo tiempo y con tesón, que hoy están completamente desautorizadas como vanas, y no pocas interpretaciones se han dado en otro tiempo acerca de algunos lugares de la Escritura —que no pertenecían ciertamente a la fe ni a las costumbres— en los que después una más diligente investigación ha aconsejado rectificar. El tiempo borra las opiniones humanas, mas «la verdad se robustece y permanece para siempre»(62). Por esta razón, como nadie puede lisonjearse de comprender rectamente toda la Escritura, a propósito de la cual San Agustín decía de sí mismo(63) que ignoraba más que sabía, cuando alguno encuentre en ella algo demasiado difícil para podérselo explicar, tenga la cautela y prudencia del mismo Doctor: «Vale más sentirse prisionero de signos desconocidos, pero útiles, que enredar la cerviz, al tratar de interpretarlos inútilmente, en las coyundas del error, cuando se creía haberla sacado del yugo de la servidumbre»(64).
53. Si los hombres que se dedican a estos estudios auxiliares siguen rigurosa y reverentemente nuestros consejos y nuestras órdenes; si escribiendo y enseñando dirigen los frutos de sus esfuerzos a combatir a los enemigos de la verdad y a precaver de los peligros de la fe a la juventud, entonces será cuando puedan gloriarse de servir dignamente el interés de las Sagradas Letras y de suministrar a la religión católica un apoyo tal como la Iglesia tiene derecho a esperar de la piedad y de la ciencia de sus hijos.
54. Esto es, venerables hermanos, lo que acerca de los estudios de Sagrada Escritura hemos creído oportuno advertir y mandar en esta ocasión movidos por Dios. A vosotros corresponde ahora procurar que se guarde y se cumpla con la escrupulosidad debida; de suerte que se manifieste más y más el reconocimiento debido a Dios por haber comunicado al género humano las palabras de su sabiduría y redunde todo ello en la abundancia de frutos tan deseados, especialmente en orden a la formación de la juventud levítica, que es nuestro constante desvelo y la esperanza de la Iglesia. Procurad con vuestra autoridad y vuestras exhortaciones que en los seminarios y centros de estudio sometidos a vuestra jurisdicción se dé a estos estudios el vigor y la prestancia que les corresponden. Que se lleven a cabo en todo bajo las directrices de la Iglesia según los saludables documentos y ejemplos de los Santos Padres y conforme al método laudable de nuestros mayores, y que de tal manera progresen con el correr de los tiempos, que sean defensa y ornamento de la verdad católica, dada por Dios para la eterna salvación de los pueblos.
55. Exhortamos, por último, paternalmente a todos los alumnos y ministros de la Iglesia a que se acerquen siempre con mayor afecto de reverencia y piedad a las Sagradas Letras, ya que la inteligencia de las mismas no les será abierta de manera saludable, como conviene, si no se alejan de la arrogancia de la ciencia terrena y excitan en su ánimo el deseo santo de la sabiduría que viene de arribas(65). Una vez introducidos en esta disciplina e ilustrados y fortalecidos por ella, estarán en las mejores condiciones para descubrir y evitar los engaños de la ciencia humana y para percibir y referir al orden sobrenatural sus frutos sólidos; caldeado así el ánimo, tenderá con más vehemencia a la consecucíón del premio de la virtud y del amor divino: «Bienaventurados los que investigan sus testimonios y le buscan de todo corazón»(66).
56. Animados con la esperanza del divino auxilio y confiando en vuestro celo pastoral, en prenda de los celestiales dones y en testimonio de nuestra especial benevolencia, os damos amorosamente en el Señor, a vosotros todos y a todo el clero y pueblo confiado a vuestros cuidados, la bendición apostólica.
Dado en Roma, junto a San Pedro, el 18 de noviembre de 1893, año 16 de nuestro pontificado.
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Notas
1. Leonis XIII Acta 13,326,364: ASS 26 (1893-94) 269-293.
2. Conc. Vat. I, ses.3 c.2: de revelatione.
3. Ibid.
4. S. Aug., De civ. Dei 11,3.
5. S. Clem. Rom., 1 Cor. 45; S. Polyc., Ad Phil. 7; Iren. Adv. haer., 2,28,2.
6. S. Io. Chrys., In Gen. hom.2,2; S. Aug., In Ps. 30 serm.2,l; S. Greg.I M., Ep. 4,13 ad Theod.
7. Tim 3,16s.
8. S. Aug., De util. cred. 14.32.
9. Hech 14,3.
10. S. Hier., Epist. 53 (al. 103) ad Paulinum 3. Cf. Hech 22,3; 2 Cor 10,4.
11. S. Hier., In Is. pról.
12. S. Hier., In Is. 54,12.
13. Cf. 1 Tes 1,5.
14. Cf. Jer 23,29.
15. Heb 4,12.
16. S. Aug., De doctr. christ. 4,6,7.
17. S. Io. Chrys., In Gen. hom.21,2; 60,3; S. Aug., De discipl. christ. 2.
18. S. Athan., Epist. fest. 39.
19. S. Aug., Serm. 26,24; S. Ambr., In Ps. 118 serm.l9 2.
20. S. Hier., Epist. 52 (al. 2) ad .Nepotianum.
21. S. Greg. M., Reg. past. 2,11 (al. 22); Moral. 18,26 (al. 14).
22. S. Aug, Serm. 179,1.
23. S. Greg. M. Reg. past. 3 24 (al. 48).
24 Cf. Act. 1,1.
25. 1 Tim 4,16.
26. S. Hier., In Mich. 1,10.
27. Conc. Trid., ses.5 c.1 de ref.
28. Ibíd. 1,2.
29. 1 Tim 6,20.
30. Ses.4 decr. de edit. et usu Libr. Sacr.
31. S. Aug., De doct.christ. 3,4.
32. S. Hier., Epist. 48 (al. 50) ad Pammachium 17.
33. S. Hier., Epist. 53 (al. 103) ad Paulinum 4.
34. S. Iren., Adv, haer. 4,26,5.
35. Conc. Vat. I, ses.3 c.2: de revel., ex Conc. Trid., ses.4 decr. de edit. et usu Libr. Sacr.
36. Conc. Vat. ses.3: de fide.
37. S Hier., Epist. 53 (al. 103) 6ss.
38. S. Aug., De util. cred. 17,35.
39. Rufinus, Hist. eccl. 2,9.
40. S. Aug., C. Iulian. 2,10,37.
41. S. Aug., De Gen. ad litt. 8,7,13.
42. Cf. Clemen. Al., Strom. 7,16; Orig., De princ, 4,8; In Lev. hom.4,8; Tertull., De praescr. 15s; S. Hilar., In Mt. 13,1.
43. S. Greg. M., Moral. 20,9 (al. 11).
44. S. Thom,, I q.l a.5 ad 2.
45. Ibíd., a.8.
46. Conc. Vat. I, ses.3 c.3: de fide.
47. Cf. Ef 6,13-17.
48. Cf. Col 3,16.
49 S. Io. Chrys., De sacerd. 4,4.
50. Cf. 1 Cor 9,22.
51. Cf. 2 Pe 3,15.
52. S. Aug., In Gen. op. imperf. 9,30.
53. S. Aug., De Gen. ad. litt. 1,21,41.
54. S. Aug., ibíd., 2,9,20.
55. S. Thom, I q.70 a.l ad 3.
56. S. Thom, In 2 Sent. d.2 q.l a.3.
57. S. Thom, Opusc. 10.
58. Conc. Vat. I, ses.3 c.2: de revel.
59 S. Aug., De cons. Evang. 1,35.
60. S. Greg. M., Moral. in 1 Iob, praef, 1,2.
61. S. Aug., Epist. 82,1 et crebius alibi.
62. 3 Esdr 4,38.
63. S. Aug., Epist. 55 ad Ianuar. 21.
64. S. Aug., De doctr. christ. 3,9,18.
65. Cf. Sal 3,15-17.
66. Sal 18,2.
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Sobre as Provas da Existência de Deus à Luz da Ciência Natural Moderna — Pio XII
Alocução “Un ora”, 1952*
ÍNDICE
Introdução
Natureza e fundamentos das provas da existência de Deus
Duas essenciais notas características do cosmo
A) A mutabilidade do cosmo. Fato da mutabilidade
a) no macrocosmo
b) no microcosmo
na esfera eletrônica
e no núcleo
O eternamente imutável
B) A direção das transformações
a) no macrocosmo: a lei da entropia
b) no microcosmo
C) O universo e seus desenvolvimentos
no futuro
no passado
D) O princípio no tempo
1. O distanciamento das nebulosas espirais ou galáxias
2. A idade da crosta sólida da terra
3. A idade dos meteoritos
4. A estabilidade dos sistemas de estrelas duplas e dos amontoados de estrelas
E) O estado e a qualidade da matéria originária
Conclusão
* * *
Na manhã de 22 de Novembro de 1951, o Santo Padre Pio XII, vindo de Castel Gandolfo, concedeu uma audiência solene, na sala do Consistório, à Academia Pontifícia de Ciências, por ocasião da “Semana de Estudo do problema dos microssismos, organizada em Roma por esta Academia. Depois do discurso do Santo Padre, o M. R. P. Agostinho Gemelli, Presidente da Academia Pontifícia de Ciências, agradeceu ao Sumo Pontífice e fez menção, enumerando os seus trabalhos particulares, dos acadêmicos pontifícios falecidos durante o ano. Nossa tradução foi feita sobre o texto italiano aparecido em L’Osservatore Romano a 23 de Novembro. Os subtítulos são do texto italiano, a numeração marginal corresponde aos parágrafos do texto.
DISCURSO
dirigido, a 22 de Novembro de 1951,
à Pontifícia Academia das Ciências
Introdução
1. Uma hora de serena alegria, pela qual somos grato ao Onipotente, é-Nos oferecida por esta reunião da Pontifícia Academia das Ciências, e ao mesmo tempo dá-nos a grata oportunidade de palestrarmos com um escol de eminentes Purpurados, de ilustres Diplomatas e de insignes Personagens, e especialmente convosco, Acadêmicos Pontifícios, bem dignos da solenidade desta assembléia, porquanto, indagando e desvendando os segredos da natureza, e ensinando os homens a dirigirem para o seu bem as forças dela, pregais ao mesmo tempo, com a linguagem dos algarismos, das fórmulas, dos descobrimentos, as inefáveis harmonias do Deus sapientíssimo.
2. De fato, a ciência verdadeira, contrariamente a arriscadas afirmações do passado, quanto mais avança tanto mais descobre Deus, como se Ele estivesse vigiando à espera, por trás de cada porta que a ciência abre. Antes, queremos dizer que, deste progressivo descobrimento de Deus, operado nos incrementos do saber, não somente se beneficia o cientista, quando pensa como filósofo — e como poderia abster-se disto?, — mas também tiram proveito todos aqueles que participam dos novos achados ou os tomam para objeto das suas considerações; e, de modo especial, tiram vantagem dele os genuínos filósofos, visto como, tomando das conquistas científicas os impulsos para as suas especulações racionais, daí auferem maior segurança nas suas conclusões, mais claras ilustrações nas possíveis sombras, mais convincentes subsídios para dar às dificuldades e às objeções uma resposta sempre mais satisfatória.
Natureza e fundamentos das provas da existência de Deus
3. Assim movido e guiado, o intelecto humano vai ao encontro dessa demonstração da existência de Deus que a sabedoria cristã reconhece nos argumentos filosóficos, joeirados nos séculos de gigantes do saber, e que para vós é bem conhecida na apresentação das “cinco vias” que o Angélico Doutor S. Tomás oferece como itinerário expedito e seguro da mente a Deus. Argumentos filosóficos, dissemos; mas nem por isto apriorísticos, como de tal os acusa um ingeneroso e incoerente positivismo. Eles operam sobre realidades concretas e certificadas pelos sentidos e pela ciência, mesmo se força probante adquirem do vigor da razão natural.
4. De tal arte, filosofia e ciências desenvolvem-se com atividades e métodos análogos e conciliáveis, valendo-se de elementos empíricos e racionais em diversa medida e conspirando em harmônica unidade para o descobrimento da verdade.
5. Mas, se a primitiva experiência dos antigos pôde oferecer à razão argumentos suficientes para a demonstração da existência de Deus, sucede que, com a ampliação e o aprofundamento do campo da própria experiência, mais cintilante e mais nítido refulge agora o vestígio do Eterno no mundo visível. Profícuo se afigura, pois, reexaminar, sobre a base das novas descobertas científicas, as clássicas provas do Angélico, especialmente as deduzidas do movimento e da ordem do universo (S. Th., 1 p., q. 2, art. 3); isto é, investigar se e quanto o conhecimento mais profundo da estrutura do macrocosmo e do microcosmo contribui para reforçar os argumentos filosóficos; e considerar depois, por outra parte, se e até que ponto foram eles, como não raras vezes se afirma, abalados pelo fato de haver a física moderna formulado novos princípios fundamentais, abolido ou modificado conceitos antigos cujo sentido, no passado, era talvez julgado fixo e definitivo, como, por exemplo, o tempo, o espaço, o movimento, a causalidade, a substância, conceitos sumamente importantes para a questão que ora nos ocupa. Mais do que de uma revisão das provas filosóficas, trata-se, pois, aqui de perscrutar as bases físicas — e, por questão de tempo, deveremos necessariamente restringir-Nos a algumas apenas, — das quais aqueles argumentos derivam. E não há que temer surpresas: a própria ciência não pretende sair desse mundo que, hoje como ontem, se apresenta com aqueles cinco “modos de ser”, dos quais toma impulso e nervo a demonstração filosófica da existência de Deus.
Duas essenciais notas características do cosmo
6. Destes “modos de ser” do mundo que nos circunda, modos notados com maior ou menor compreensão, mas com igual evidência, pelo filósofo e pela inteligência comum, há dois que as ciências modernas maravilhosamente sondaram, averiguaram e aprofundaram além de qualquer expectativa: lº) a mutabilidade das coisas, inclusive o seu nascimento e o seu fim; 2º) a ordem de finalidade que reluz em cada ângulo do cosmo. Notabilíssimo é o contributo assim prestado pelas ciências às duas demonstrações filosóficas que sobre elas versam e que constituem a primeira e a quinta vias. À primeira delas, a física, especialmente, tem conferido uma inesgotável mina de experiências, revelando o fato da mutabilidade em profundos recessos da natureza, onde anteriormente nenhuma mente humana podia sequer suspeitar-lhe a existência e a amplitude, e fornecendo uma multiplicidade de fatos empíricos que são um valiosíssimo subsídio para o raciocínio filosófico. Dizemos subsídio porque, ao contrário, a direção das mesmas transformações, embora certificadas pela física moderna, parece-Nos superar o valor de uma simples confirmação, e como que atinge a estrutura e o grau de um argumento físico em grande parte novo e, para muitas mentes, mais aceitável, persuasivo e agradável.
7. Com semelhantes riquezas, as ciências, especialmente as astronômicas e biológicas, têm, nos últimos tempos, proporcionado ao argumento da ordem um tal acervo de conhecimentos e uma tal visão, por assim dizer inebriante, da unidade conceitual que anima o cosmo e da finalidade que lhe dirige o caminho, que destarte antecipa ao homem moderno aquele gáudio que o Poeta imaginava no céu empíreo, quando viu como em Deus “se interna — ligado com amor num só volume — o que pelo universo se folheia” (Paraíso 33, 85-87).
8. Todavia, a Providência dispôs que a noção de Deus, tão essencial à vida de cada homem, como facilmente se pode inferir de um simples olhar lançado sobre o mundo, que não lhe compreender a voz é estultícia (cf. Sab 13, 1-2), assim receba confirmação de todo aprofundamento e progresso dos conhecimentos científicos.
9. Querendo, pois, dar aqui uma rápida amostra do precioso serviço que as ciências modernas prestam à demonstração da existência de Deus, restringir-Nos-emos primeiramente ao fato das mutações, realçando-lhe principalmente a amplitude, a vastidão e, por assim dizer, a totalidade que a física moderna verifica no cosmo inanimado; depois, deter-Nos-emos sobre o significado da direção delas, qual ficou igualmente certificada. Será como que prestar ouvido a um pequeno concerto do imenso universo, que, entretanto, tem voz bastante para cantar “a glória d’Aquele que tudo move” (Par. 1, 1).
A) A mutabilidade do cosmo. Fato da mutabilidade
a) no macrocosmo:
10. Ao primeiro aspecto, justamente causa admiração o ver como, à medida que as ciências têm progredido, o conhecimento do fato da mutabilidade tem ganho sempre maior terreno tanto no macrocosmo como no microcosmo, como que confirmando com novas provas a teoria de Heráclito: “Tudo passa”: panta rhei. Como é conhecido, a própria experiência cotidiana mostra uma ingente quantidade de transformações no mundo próximo ou remoto que nos circunda, sobretudo os movimentos locais dos corpos. Mas, além destes verdadeiros e próprios movimentos locais, são, do mesmo modo, facilmente visíveis as multiformes mudanças químico-físicas, por exemplo a mutação do estado físico da água nas suas três fases de vapor, líquido e gelo; os profundos efeitos químicos mediante o uso do fogo, cujo conhecimento remonta à idade pré-histórica; a desagregação das pedras e a corrupção dos corpos vegetais e animais. A tal experiência comum veio juntar-se a ciência natural, que ensinou a compreender estes e outros semelhantes acontecimentos como processos de destruição ou de construção das substâncias corpóreas nos seus elementos químicos, ou seja nas suas mais pequenas partes, os átomos químicos. Antes, indo mais além, ela tornou manifesto como esta mutabilidade químico-física de modo algum se restringe aos corpos terrestres, como era a crença dos antigos, mas se estende a todos os corpos do nosso sistema solar e do grande universo, que o telescópio, e ainda melhor o espectroscópio, têm mostrado serem formados pelas mesmas espécies de átomos.
b) no microcosmo:
11. Contra a indiscutível mutabilidade da natureza mesmo inanimada, ainda se erguia, contudo, o enigma do inexplorado microcosmo. De feito, parecia que, diferentemente do mundo animado, a matéria inorgânica fosse, em certo sentido, imutável. As suas mais pequenas partes, os átomos químicos, podiam, sim, unir-se entre si nos mais diversos modos, porém pareciam gozar do privilégio de uma eterna estabilidade e indestrutibilidade, saindo inalterados de qualquer síntese e análise química. Há cem anos atrás, eles ainda eram julgados simples, indivisíveis e indestrutíveis partículas elementares. O mesmo se pensava das energias e das forças materiais do cosmo, sobretudo com base nas leis fundamentais da conservação da massa e da energia. Alguns naturalistas julgavam-se até autorizados a formular em nome da sua ciência uma fantástica filosofia monista, cuja triste lembrança está ligada, entre outros, ao nome de Ernst Haeckel. Porém mesmo no seu tempo, em fins do século passado, também esta concepção simplista do átomo químico foi transtornada pela ciência moderna. O crescente conhecimento do sistema periódico dos elementos químicos, o descobrimento das irradiações corpusculares dos elementos radioativos, e muitos outros fatos semelhantes, mostraram que o microcosmo do átomo químico, com dimensões da ordem do décimo milionésimo de milímetro, é teatro de contínuas mutações, não menos que o macrocosmo por todos bem conhecido.
na esfera eletrônica:
12. E, primeiramente, o caráter da mutabilidade foi verificado na esfera eletrônica. Da estrutura eletrônica do átomo emanam irradiações de luz e de calor que são absorvidas pelos corpos externos, correspondentemente ao nível de energia das órbitas eletrônicas. Nas partes exteriores desta esfera efetua-se também a ionização do átomo e a transformação da energia na síntese e na análise das combinações químicas. Mas então podia-se supor que estas transformações químico-físicas ainda deixassem um refúgio à estabilidade, não atingindo o próprio núcleo do átomo, sede da massa e da carga elétrica positiva, pelas quais é determinado o lugar do átomo químico no sistema natural dos elementos, e onde pareceu encontrar-se como que o tipo do absolutamente estável e invariável.
e no núcleo.
13. Mas já nos albores do novo século, a observação dos processos radioativos, a atribuir-se, em última análise, a uma espontânea desintegração do núcleo, leva a excluir um tal tipo. Verificada, pois, a instabilidade até no mais profundo recesso da natureza conhecida, restava todavia um fato que deixava perplexos os observadores, parecendo que o átomo era inatacável ao menos pelas forças humanas, visto haverem, em princípio, falhado todas as tentativas de lhes acelerar ou deter a natural desagregação radioativa, ou mesmo de desintegrar núcleos não-ativos. A primeira e assaz modesta desintegração do núcleo (de azoto) remonta a apenas três decênios; e só há poucos anos, após ingentes esforços, foi possível efetuar em consideráveis quantidades processos de formação e de decomposição de núcleos. Embora este resultado (que, quando serve às obras de paz, certamente se erige em título de louvor para o nosso século) não represente no campo da física nuclear prática senão um primeiro passo, todavia com ele é assegurada para a nossa consideração uma importante conclusão: os núcleos atômicos são, realmente, para muitas ordens de grandeza, mais firmes e mais estáveis do que as composições químicas ordinárias, porém, não obstante isto, são também maximamente sujeitos a semelhantes leis de transformação e, portanto, mutáveis.
14. Ao mesmo tempo, pôde-se verificar que tais processos têm a maior importância na economia da energia das estrelas fixas. No centro do nosso sol, por exemplo, opera-se, segundo Bethe, numa temperatura que gira em torno dos vinte milhões de graus, uma reação em cadeia fechada, na qual quatro núcleos de hidrogênio se unem num núcleo de hélio. A energia que assim se libera vem a compensar a perda devida à irradiação do próprio sol. Mesmo nos modernos laboratórios físicos consegue-se, mediante o bombardeio com partículas dotadas de altíssima energia ou com neurônios, efetuar transformações de núcleos, como se pode ver no exemplo do átomo de urânio. A este propósito, cumpre outrossim mencionar os efeitos da radiação cósmica, que pode desagregar os átomos mais pesados, desprendendo assim, não raras vezes, enxames inteiros de partículas subatômicas.
15. Quisemos citar apenas poucos exemplos, capazes entretanto de pôr fora de qualquer dúvida a expressa mutabilidade do mundo inorgânico, grande e pequeno: as múltiplas transformações das formas de energia, especialmente nas decomposições e combinações químicas no macrocosmo; e, não menos, a mutabilidade dos átomos químicos até à partícula subatômica dos seus núcleos.
O eternamente imutável
16. O cientista de hoje, mergulhando o olhar no interior da natureza mais profundamente do que o seu predecessor de cem anos atrás, sabe, pois, que a matéria inorgânica, por assim dizer na sua medula mais íntima, está marcada com o cunho da mutabilidade, e que portanto o seu ser e o seu subsistir exigem uma realidade inteiramente diversa e, por sua natureza, invariável.
17. Assim como num quadro em claro-escuro as figuras ressaltam do fundo escuro, só desse modo obtendo o pleno efeito de plástica e de vida, assim também a imagem do eternamente imutável emerge, clara e esplendente, da torrente que, no macro e no microcosmo, arrebata consigo todas as coisas e as transtorna numa intrínseca mutabilidade que nunca pára. O cientista que se detém à margem dessa imensa torrente, acha repouso naquele grito de verdade com que Deus se definiu a si mesmo: “Eu sou quem sou” (êx 3, 14), e que o Apóstolo louva como “Pater luminum, apud quem non est transmutatio neque vicissitudinis obumbratio” (Tgo 1, 17).
B) A direção das transformações
a) no macrocosmo: a lei da entropia.[1]
18. Mas a ciência moderna não somente alargou e aprofundou os nossos conhecimentos sobre a realidade e a amplitude da mutabilidade do cosmo; oferece-nos também preciosas indicações acerca da direção segundo a qual se realizam os processos na natureza. Ao passo que, ainda há cem anos, especialmente depois do descobrimento da lei da constância, se pensava que os processos naturais fossem reversíveis, e, por isto, segundo os princípios da estrita causalidade — ou, melhor, determinação — da natureza, considerava-se possível uma sempre ocorrente renovação e rejuvenescimento do cosmo; com a lei da entropia, descoberta graças a Rodolfo Clausius, veio-se a conhecer que os processos naturais espontâneos estão sempre unidos a uma diminuição da energia livre e utilizável; o que, num sistema material fechado, deve conduzir finalmente à cessação dos processos em escala macroscópica. Este destino fatal, que somente hipóteses às vezes sobejamente gratuitas, como a da criação contínua supletiva, se esforçam por poupar ao universo, mas que, ao invés, ressalta da experiência científica, postula eloqüentemente a existência de um Ente necessário.
b) no microcosmo:
19. No microcosmo, esta lei, estatística no fundo, não tem aplicação, e, além disto, ao tempo da sua formulação quase nada se conhecia da estrutura e do comportamento do átomo. Todavia, a mais recente investigação sobre o átomo, e outrossim o inesperado desenvolvimento da astrofísica, possibilitaram neste campo surpreendentes descobrimentos. O resultado não pode ser aqui senão brevemente indicado, e é que também ao desenvolvimento atômico e intra-atômico é claramente consignado um sentido de direção.
20. Para ilustrar este fato, bastará recorrer ao já mencionado exemplo do comportamento das energias solares. A estrutura eletrônica dos átomos químicos na fotosfera do sol desprende, a cada segundo, uma gigantesca quantidade de energia radiante no espaço circunstante, do qual não retorna. A perda é compensada no interior do sol por meio da formação de hélio de hidrogênio. A energia que com isto se torna livre provém da massa dos núcleos de hidrogênio, a qual, neste processo, em pequena parte (7%) se converte em energia equivalente. O processo de compensação desenvolve-se, pois, a expensas da energia, que originariamente, nos núcleos de hidrogênio, existe como massa. Assim, no curso de bilhões de anos, lenta mas irreparavelmente, tal energia transforma-se em radiações. Coisa semelhante acontece em todos os processos radioativos, quer naturais, quer artificiais. Mesmo aqui, pois, no estrito e próprio microcosmo, verificamos uma lei que indica a direção da evolução, e que é análoga à lei da entropia no macrocosmo. A direção da evolução espontânea é determinada mediante a diminuição da energia utilizável na estrutura e no núcleo do átomo, e até agora não se conhecem processos capazes de compensar ou de anular tal degradação, por meio da formação espontânea de núcleos de alto valor energético.
C) O universo e seus desenvolvimentos
no futuro:
21. Portanto, se o cientista volve o olhar do estado presente do universo para o futuro, mesmo remotíssimo, vê-se forçado a verificar, no macrocosmo como no microcosmo, o envelhecimento do mundo. No curso de bilhões de anos, até mesmo as quantidades de núcleos atômicos aparentemente inesgotáveis perdem energia utilizável, e, para falar figuradamente, a matéria aproxima-se de um vulcão extinto e escoriforme. E vem a pêlo pensar que, se o cosmo presente, hoje tão pulsante de ritmos e de vida, não é suficiente para, como se viu, dar razão de si, tanto menos poderá fazê-lo o cosmo sobre o qual houver passado, a seu modo, a asa da morte.
no passado:
22. Voltemos agora o olhar para o passado. À medida que se retrocede, a matéria apresenta-se sempre mais rica de energia livre, e teatro de grandes transtornos cósmicos. Assim, tudo parece indicar que o universo material teve, desde tempos finitos, um poderoso início, provido como estava de uma abundância inimaginavelmente grande de reservas energéticas, em virtude das quais, primeiro rapidamente, depois com crescente lentidão, evolveu para o estado presente.
23. Apresentam-se, pois, espontâneos, à mente, dois quesitos: Está a ciência em condições de dizer quando teve lugar esse poderoso princípio do cosmo? E qual era o estado inicial, primitivo, do universo?
24. Os mais excelentes peritos da física do átomo, em colaboração com os astrônomos e com os astrofísicos, têm-se esforçado por fazer luz sobre estes dois árduos, mas sobremodo interessantes problemas.
D) O princípio no tempo
25. Antes de tudo, para citar algumas cifras, que nada pretendem senão exprimir uma ordem de grandeza ao designar o alvorecer do nosso universo, isto é, o seu princípio no tempo, a ciência dispõe de várias vias, cada uma bastante independente da outra, mas no entanto convergentes, as quais brevemente indicamos:
1. O distanciamento das nebulosas espirais ou galáxias.
26. O exame de numerosas nebulosas espirais, executado especialmente por Edwin E. Hubble no Mount Wilson Observatory, levou ao significativo resultado — embora temperado de reservas — de que esses longínquos sistemas de galáxias tendem a distanciar-se uma da outra com tanta velocidade, que o intervalo entre duas dessas nebulosas espirais em cerca de 1300 milhões de anos se duplica. Se se olha, atrás, o tempo deste processo do “Expanding Universe”, resulta que, de um a dez bilhões de anos passados, a matéria de todas as nebulosas espirais achava-se comprimida num espaço relativamente restrito quando os processos cósmicos tiveram princípio.
2. A idade da crosta sólida da terra.
27. Para calcular a idade das substâncias originárias radioativas, datas muito aproximativas se deduzem da transmutação do isótopo do urânio 238 num isótopo de chumbo (RaG), do urânio 235 em actínio D (AcD) e do isótopo de tório 232 em tório D (ThD). A massa de hélio que com isto se forma pode servir de controle. Por tal via, resultaria que a idade média dos minerais mais antigos é, no máximo, de 5 bilhões de anos.
3. A idade dos meteoritos.
28. O método precedente aplicado aos meteoritos, para lhes calcular a idade, deu aproximadamente a mesma cifra de 5 bilhões de anos. Resultado este que adquire especial importância desde quando hoje em dia é geralmente admitida a origem interestelar dos meteoritos.
4. A estabilidade dos sistemas de estrelas duplas e dos amontoados de estrelas.
29. As oscilações da gravitação dentro destes sistemas, como o atrito das marés, restringem de novo a estabilidade deles para entre os termos de 5 até 10 bilhões de anos.
30. Se estas cifras podem causar estupor, todavia nem mesmo ao mais simples dos crentes trazem elas um conceito novo e diverso do ensinado pelas primeiras palavras do Gênese “In principio”, ou seja o início das coisas no tempo. A essas palavras elas dão uma expressão concreta e quase matemática, enquanto um conforto a mais brota delas para aqueles que compartilham com o Apóstolo a estima para com essa Escritura, divinamente inspirada, a qual é sempre útil “ad docendum, ad arguendum, ad corripiendum, ad erudiendum” (2 Tim 3, 16).
E) O estado e a qualidade da matéria originária
31. Com igual empenho e liberdade de indagação e de verificação, além de à questão sobre a idade do cosmo os doutos aplicaram o seu audaz engenho à outra, já apontada, e certamente mais árdua, que concerne ao estado e à qualidade da matéria primitiva.
32. Segundo as teorias que se tomam por base, os relativos cálculos diferem não pouco uns dos outros. Contudo, concordam os cientistas em admitir que, ao lado da massa, também a densidade, a pressão e a temperatura devem ter atingido graus totalmente enormes, como se pode ver no recente trabalho de A. Unsöld, diretor do Observatório de Kiel (Kernphysik und Kosmologie, na Zeitschrift für Astrophysik, 24. B., 1948, pp. 278-305). Só em tais condições se pode compreender a formação dos núcleos pesados e a sua freqüência relativa no sistema periódico dos elementos.
33. Por outro lado, com razão a mente ávida de verdade insiste em perguntar como foi que a matéria chegou a um estado tão inverossímil para a nossa comum experiência de hoje, e que foi que a precedeu. Em vão se esperaria uma resposta da ciência natural, a qual antes lealmente declara achar-se em face de um enigma insolúvel. Bem verdade é que demasiado se exigiria da ciência natural como tal; mas certo é também que mais profundamente penetra no problema o espírito humano versado na meditação filosófica.
34. É inegável que uma mente iluminada e enriquecida pelos modernos conhecimentos científicos, a qual pondere serenamente este problema, é levada a romper o círculo de uma matéria totalmente independente e autóctona, ou porque incriada, ou porque criada por si, e a remontar a um Espírito criador. Com o mesmo olhar límpido e crítico com que examina e julga os fatos, entrevê ela e reconhece aí a obra da onipotência criadora, cuja virtude, agitada pelo potente “fiat” pronunciado há bilhões de anos pelo Espírito criador, se desenvolveu no universo, chamando à existência, com um gesto de amor generoso, a matéria exuberante de energia. Parece, realmente, que a ciência hodierna, saltando de um pulo milhões de séculos, conseguiu fazer-se testemunha desse primordial “Fiat lux”, quando do nada prorrompeu, com a matéria, um mar de luz e de radiações, enquanto as partículas dos elementos químicos se cindiram e se reuniram em milhões de galáxias.
35. Bem verdade é que, da criação no tempo, os fatos até aqui averiguados não são argumento de prova absoluta, como são, ao contrário, os atingidos pela metafísica e pela revelação, naquilo que concerne à simples criação, e pela revelação se se trata de criação no tempo. Os fatos pertinentes às ciências naturais, a que Nos havemos referido, aguardam ainda maiores indagações e confirmações, e as teorias fundadas neles precisam de novos desenvolvimentos e provas, para oferecerem uma base segura a uma argumentação que, por si, está fora da esfera própria das ciências naturais.
36. Não obstante isto, é digno de atenção que modernos cultores destas ciências considerem a idéia da criação do universo inteiramente conciliável com a sua concepção científica, e que, antes, a ela são eles espontaneamente conduzidos pelas suas investigações; ao passo que, ainda há poucos decênios, uma tal “hipótese” era repelida como absolutamente inconciliável com o estado presente da ciência. Ainda em 1911 o célebre físico Svante Arrehnius declarava que “a opinião de que alguma coisa possa nascer do nada está em contraste com o estado presente da ciência, segundo a qual a matéria é imutável” (Die Vorstellung vom Weltgebäude im Wandel der Zeiten, 1911, p. 362). De igual modo, é de Plate a afirmação: “A matéria existe. Do nada não nasce nada: por conseqüência, a matéria é eterna. Não podemos admitir a criação da matéria” (Ultramontane Weltanschauung und moderne Lebenskunde, 1907, p. 55).
37. Quão diverso e mais fiel espelho de imensas visões é, ao contrário, a linguagem de um moderno cientista de primeira ordem, Sir Edmund Whittaker, Acadêmico Pontifício, quando fala das supracitadas investigações em torno da idade do mundo: “Estes diferentes cálculos convergem para a conclusão de ter havido uma época, cerca de 109 ou 1010 anos atrás, antes da qual o cosmo, se existia, existia de forma totalmente diversa de qualquer coisa por nós conhecida: de modo que ela representa o último limite da ciência. Podemos, talvez, sem impropriedade, referir-nos a ela como à criação. Ela fornece um concordante fundo à visão do mundo que é sugerida pela evidência geológica, isto é, de que todo organismo existente na terra teve um princípio no tempo. Se este resultado devesse ser confirmado por futuras investigações, bem poderia vir a ser considerado como a mais importante descoberta da nossa época, visto representar uma mudança fundamental na concepção científica do universo, semelhante à efetuada, há quatro séculos, por obra de Copérnico” (Space and Spirit, 1946, pp. 118-119).
Conclusão
38. Qual é, pois, a importância da ciência moderna relativamente ao argumento, em prova da existência de Deus, deduzido da mutabilidade do cosmo? Por meio de indagações exatas e particularizadas no macrocosmo e no microcosmo, ela alargou e aprofundou consideravelmente o fundamento empírico em que aquele argumento se baseia, e do qual se conclui para a existência de um Ens a se, imutável por sua natureza. Além disto, ela seguiu o curso e a direção dos desenvolvimentos cósmicos, e, assim como lhes entreviu o termo fatal, assim também apontou o início deles num tempo de cerca de 5 bilhões de anos atrás, confirmando, com a positividade própria das provas físicas, a contingência do universo e a fundada dedução de que por aquela época o cosmo tenha saído das mãos do Criador.
39. A criação no tempo, pois; e, por isto, um Criador; portanto Deus! É esta a voz, conquanto não explícita nem completa, que Nós pedíamos à ciência, e que a presente geração humana espera dela. É voz que irrompe da madura e serena consideração de um só aspecto do universo, vale dizer da sua mutabilidade; mas já é suficiente para que a humanidade inteira, ápice e expressão racional do macrocosmo e do microcosmo, tomando consciência do seu alto Criador, se sinta coisa d’Ele no espaço e no tempo, e, caindo de joelhos diante da sua soberana Majestade, comece a lhe invocar o nome: “Rerum, Deus, tenax vigor, — immotus in te permanens, — lucis diurnae tempora — successibus determinans” (ex Hymn. ad Nonam).
40. O conhecimento de Deus como único Criador, conhecimento comum a muitos cientistas modernos, é, de certo, o extremo limite a que pode chegar a razão natural; mas — como bem sabeis — não constitui a última fronteira da verdade. Do mesmo Criador, encontrado pela ciência no seu caminho, a filosofia, e muito mais a revelação, em harmônica colaboração, por serem todas três instrumentos da verdade como raios do mesmo sol, contemplam a substância, desvendam os contornos, reproduzem os traços. Sobretudo a revelação torna a presença dele quase imediata, vivificante, amorosa, qual a que o simples crente ou o cientista notam no íntimo do seu espírito, quando repetem sem vacilação as concisas palavras do antigo Símbolo dos Apóstolos: “Credo in Deum, Patrem omnipotentem, Creatorem caeli et terrae!”
41. Hoje, depois de tantos séculos de civilização, porque séculos de religião, não é que se faça mister descobrir pela primeira vez a Deus, quando, antes, urge senti-lo como Pai, venerá-lo como Legislador, temê-lo como Juiz; para salvação dos povos urge que eles adorem o Filho, amoroso Redentor dos homens, e se dobrem aos suaves impulsos do Espírito, fecundo Santificador das almas.
42. Esta persuasão, que da ciência tira os seus longínquos impulsos, é coroada pela fé, a qual, se sempre mais radicada na consciência dos povos, poderá deveras trazer um progresso fundamental ao curso da civilização.
43. É uma visão do todo, do presente como do futuro, da matéria como do espírito, do tempo como da eternidade, que, iluminando as mentes, poupará aos homens de hoje uma longa noite de tempestade.
44. É aquela fé que neste momento Nos faz elevar, Àquele que ainda há pouco invocamos como Vigor, Immotus e Pater, a fervorosa súplica por todos os seus filhos a Nós dados em custódia: “Largire lumen vespere, — quo vita nusquam decidat” (1. c.): luz para a vida do tempo, luz para a vida da eternidade.
Pio XII
* Editora Vozes Ltda., Petrópolis, R. J., Rio de Janeiro — São Paulo. Imprimatur por comissão especial do Exmo. e Revmo. Sr. Dom Manuel Pedro da Cunha Cintra, Bispo de Petrópolis. Frei Lauro Ostermann, O. F. M. Petrópolis, 1-II-1952. Tradução de Luís Leal Ferreira.
[1] A entropia (do grego εντροπία, entropía) é uma grandeza termodinâmica geralmente associada ao grau de desordem. Ela mede a parte da energia que não pode ser transformada em trabalho. É uma função de estado cujo valor cresce durante um processo natural em um sistema fechado. A entropia cresce quando o corpo recebe calor; diminui, quando escapa calor. Rodolfo Clausius (1822-1888) é um físico alemão, que estudou sobretudo as teorias relativas ao calor dos corpos. Reduziu as leis fundamentais do calor às leis mecânicas e introduziu no estudo das transformações termodinâmicas a nova função da entropia. Publicou entre outros um livro intitulado: “Teoria mecânica do calor”.