Carlos Nougué

Nota prévia
Este é o artigo 3 de um longo opúsculo, de mesmo título, publicado em livro (Estudos Tomistas, esgotado). – Atente-se a que se trata de artigo disputado, ou seja, os primeiros argumentos são objeções à doutrina sustentada na resposta do artigo (e na solução das objeções).
*  *  *
E parece que sim, que se deve rezar pela salvação do mundo.
1. Com efeito, pelas razões indicadas anteriormente, deve-se rezar pela salvação de todos. Mas o mundo é formado exatamente por esses todos por cuja salvação se reza. Logo, deve-se rezar pela salvação do mundo.
2. Ademais, o homem é um animal político ou social. Ora, não o poderia ser se não se organizasse em cidades, ou seja, nas nações ou países de que justamente se compõe o mundo. Mas a salvação do homem não pode dar-se, como visto nos artigos anteriores, sem a graça, a qual, todavia, como diz Santo Tomás de Aquino, non tollat naturam, sed perficiat (não suprime a natureza, senão que a perfaz [ou aperfeiçoa]).[1] Por conseguinte, ou seja, porque a graça não vem suprimir o caráter naturalmente político do homem, deve-se rezar pela salvação do mundo e de suas póleis.
3. Por fim, se justamente se entende a natureza política do homem enquanto ordenada à salvação, então esta supõe a cristianização do mundo e de suas póleis; e, com efeito, o mundo cristianizou-se a partir da conversão da Roma imperial e constituiu-se em Cristandade, onde reinava Cristo mediante a direção espiritual da Igreja. Mas o mundo veio descristianizando-se, em longo processo de apostasia que parece atinge hoje o ápice. Deve-se portanto rezar pela salvação do mundo e de seus países no preciso sentido de que se deve rezar por sua recristianização (ou, o que é dizer o mesmo, por sua reorganização em Cristandade).
Mas contrariamente está o dito em 2 Pedro 3, 13.: “esperamos novos céus e nova terra, onde habita a justiça”. Ora, diz o Senhor (cf. Mateus 5): “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”. Mas não o serão senão nos céus e na terra onde habita a justiça. Não se deve, portanto, rezar pela salvação do mundo.
Resposta. Deve dizer-se, antes de tudo, que a palavra mundo se toma em várias acepções.
1. Antes de tudo, chama-se “mundo” não só ao universo mas à parte sua em que vivemos, a terra. Ora, o universo, incluída a terra, é exatamente o que passará[2] para dar lugar a novos céus e a uma nova terra.[3] Tais novos céus e tal nova terra, explica-os detidamente Santo Tomás de Aquino no Compêndio de Teologia:[4] porque o mundo será então o lugar dos corpos gloriosos, ou seja, os que se ordenarão absolutamente à alma em sua visão beatífica de Deus por essência, então os astros cessarão de mover-se, na terra já não haverá vegetais nem animais, etc. – tudo isso que terá servido aos homens de corpo propriamente terrestre. E muito mais que compreendermos tal transformação, que se dará com o acabamento da Jerusalém Celeste, os católicos, de acordo com a promessa divina, “esperamos novos céus e nova terra, onde habita a justiça”.[5]
2. Ademais, “mundo” é o que encerra ou designa os princípios da recusa de Deus e de sua Igreja (e este é o significado mais comum nas Escrituras e no âmbito teológico): “Não ameis o mundo nem as coisas do mundo… porque tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, e concupiscência dos olhos, e soberba da vida”;[6] “Não sabeis que a amizade deste mundo é inimiga de Deus? Portanto, todo aquele que quer ser amigo deste século, esse se constitui inimigo de Deus”;[7] “Ai do mundo por causa dos escândalos!”;[8] “Todo o mundo está sob o maligno”;[9] “Se o mundo vos aborrece, sabei que, primeiro que a vós, me aborreceu a mim. Se vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que seria seu; mas, porque não sois do mundo, antes eu vos escolhi do meio do mundo, e por isso o mundo vos aborrece”;[10] “Vem o príncipe deste mundo, e não tem em mim coisa alguma”;[11] “O príncipe deste mundo já está julgado”;[12] “Todo o que nasceu de Deus vence o mundo; e a vitória que vence o mundo é nossa fé”.[13]
3. Chama-se “mundo”, ainda, ao conjunto de homens que hão de ser remidos pela Redenção, ou seja, os eleitos: “Deus não enviou seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele”;[14] o Pai amou o mundo até dar-lhe seu próprio Filho Único e, com este, todos os bens.[15] E, com efeito, ao instituir a eucaristia, disse Cristo: “Bebei dele todos. Porque isto é o meu sangue [que será o selo] do novo testamento, o qual será derramado por muitos [não por todos] para remissão dos pecados”[16] (ou, na versão de Marcos:[17] “Isto é o meu sangue do Novo Testamento, o qual será derramado por muitos”).[18]
4. Chama-se “mundo”, ademais, à sociedade natural (política, cultural, etc.) dos homens: “Se meu reino fosse deste mundo, certamente meus ministros se haveriam de esforçar para que eu não fosse entregue aos judeus”;[19] “Os que usam deste mundo sejam como se dele não usassem, porque a figura deste mundo passa”;[20] “Por carta vos escrevi que não tivésseis comunicação com os fornicadores; não certamente com os fornicadores deste mundo… doutra sorte deveríeis sair deste mundo”.[21]
5. Muitos dizem porém que o mundo entendido no último sentido é, diferentemente do mundo nos dois sentidos anteriores, algo neutro. Mas, em sentido contrário, diz Santo Agostinho[22] que o mundo enquanto sociedade natural nunca é neutro, senão que está permanentemente dividido entre a cidade de Deus e a do demônio. – Daí vem que se possa tomar mundo ainda, e por fim, de outra maneira: a de quando dizemos “mundo cristão”, ou “mundo pagão”, ou “mundo apóstata”, etc. Mas esta última maneira decorre precisamente do referido por Santo Agostinho. Com efeito, o mundo cristão é aquele em que domina a Cidade de Deus, que, sem poder suprimir embora a cidade do demônio e do amor-próprio, como que a mantém encadeada; o mundo pagão e o mundo apóstata são, ao contrário, formas diversas da própria cidade do demônio e do amor-próprio, a qual mantém oprimida a Cidade de Deus (ainda que aquela já esteja de antemão derrotada, no preciso sentido em que o diz o Padre Calmel em Théologie de l’histoire: “Para esta terra, vitória sem dúvida, mas vitória no sentido de que aquele que o Pai deu a Jesus ninguém o pode tirar de Sua mão, não no sentido de que os lobos vorazes não perseguirão as ovelhas fiéis até no redil do Dono e não lhes farão sentir suas mordidas; mas é impossível que os lobos sejam mais fortes que o Dono; eles não podem levar consigo as ovelhas que permanecem firmes na fé e confiantes com humildade”).
Pois bem, hoje não só já apostataram as nações, senão que também já apostatou parte considerável da hierarquia eclesiástica.[23]
• Naturalmente, não há nada de ilícito quanto à fé em rezar pela salvação, ou seja, pela recristianização deste mundo apóstata. Mas, antes de tudo, insista-se, é de fé que tanto no sentido de 1 supra como no de 4 supra um dia o mundo deixará de ser, para dar lugar, como dito, a novos céus e a uma nova terra – e à Jerusalém Celeste. Ademais, a espera dos novos céus e da nova terra, segundo o dito em 2 Pedro 3, 13 (“esperamos novos céus e nova terra, onde habita a justiça”), não é própria de hoje, num mundo apóstata; senão que também o era dos tempos apostólicos ou do mesmo cume da Cristandade, o século XIII. Nossa esperança, com efeito, não se há de voltar antes para a terra, para o mundo, ainda um mundo cristão, senão que nos é infundida para que suspiremos sobretudo e justamente pela Jerusalém Celeste. Como diz o Padre Calmel O. P. ainda em Théologie de l’histoire, “Deus faz durar o mundo propter electos”, razão por que este mundo deixará de durar quando se salvar o último deles. Mas, se a história não se desenrola senão para a completação do número dos eleitos, então nossa espera e nosso mesmo rogo não se hão de ordenar última e centralmente senão à cidade e pátria destes – a celeste. Com efeito, diz Santo Agostinho no sermão numerado 116: “Então, digo, no fim do mundo, aproximar-se-ão do fundamento as pedras, as pedras vivas, as pedras santas, para que se complete o edifício que teve início naquela Igreja; ou melhor, na mesma Igreja que agora, enquanto se edifica a casa, canta o cântico novo. Assim se expressa o próprio salmo: ‘Quando se edificava a casa depois do cativeiro’. E quê? ‘Cantai ao Senhor um cântico novo; cantai ao Senhor toda a terra’ (Ps. 95, 1). Quão grande é esta casa! Quando porém canta o cântico novo? Enquanto se edifica. Quando será a inauguração? No fim do mundo. O fundamento dela já foi inaugurado, porque subiu ao céu e não morre. Também nós, quando ressuscitarmos para nunca mais morrer, seremos então inaugurados”.
• Depois, há que atender à sucessão de eventos profetizada nas Escrituras: a apostasia do mundo e na Igreja;[24] o advento do derradeiro Anticristo, o homem do pecado, o filho da perdição;[25] a morte desse iníquo pelo “espírito da boca” do Senhor;[26] a conversão do povo judeu e seu efeito geral;[27] e, por fim, o segundo advento do Senhor ou Parusia, etc.[28] Pois bem, atendendo assim à referida sucessão de eventos, não é de fácil aceitação que se deem duas ou mais apostasias do mundo e na Igreja antes que enfim se dê a Parusia. Ademais, como vimos, Romanos 11, 11-12 indica certa consequência da morte do Anticristo e da conversão dos judeus. Interpreta-o assim, com outros, o Père Augustin Berthe (em Jésus-Christ, sa vie, sa passion, son triomphe): congraçados então os gentios e os pagãos na mesma fé, o mundo tornará a reger-se por Cristo, o que prosseguirá “por tanto tempo quanto for necessário para que se complete o número de seus eleitos. Quanto anos? Quantos séculos? Esse é um segredo que ele não revelou a ninguém. Tudo o que sabemos por suas últimas predições é que um dia a agonia do mundo soará”, ou seja, um dia se dará o fim do mundo e a Parusia. Mas Santo Tomás admite outra interpretação, mais estrita, destes dois versículos de São Paulo. Com efeito, […] os que enganados pelo Anticristo tiverem caído totalmente serão, após a conversão dos judeus, restituídos em seu primeiro fervor. E ainda, assim como, após a queda dos judeus, os gentios se reconciliariam com suas antigas inimizades, assim também, após a conversão dos judeus, sendo então iminente o fim do mundo, se dará a ressurreição geral, e por ela os homens, de mortos que estavam, voltarão à vida imortal” (destaque nosso).[29]
• Como quer que seja, parece que, após o tempo mais ou menos longo (ou ínfimo) que se seguirá à conversão dos judeus, não tornará a dar-se apostasia das nações, nem dos judeus, nem na Igreja;[30] e tal tempo não se desdobrará senão, ainda, para a completação do número dos eleitos.
Por isso mesmo é que, conquanto, por não sabermos quantos e quem são os eleitos, Deus queira que rezemos pela salvação de todos os homens, havemos de entendê-lo, teologicamente, como ordenado propriamente e ultimamente ao mundo dos eleitos.
Dê-se, assim, a solução das objeções.
1. Quanto à primeira objeção, deve dizer-se que se concede, se se trata de mundo tomado no sentido de todo o mundo, toda a gente. Mas tal uso da palavra “mundo” é de todo inusual.
2. Quanto à segunda, deve dizer-se que, se a graça não suprime a natureza política ou social do homem, também é certo, todavia, que esta mesma natureza, como também, mutatis mutandis, a virtude nutritiva e a geracional do homem, não passará de certa recordação na Jerusalém Celeste: nesta, com efeito, os homens terão o intelecto deiformado para viver de contemplar a Deus por essência, e segundo isso serão antes como anjos.
3. Quanto à terceira, deve dizer-se que, como dito na resposta, não há nada de ilícito em rezar pela salvação ou recristianização do mundo. Mas, como dito ainda na resposta, se se atende ao profetizado nas Escrituras, não parece provável que o mundo se recristianize antes da morte do Anticristo e da conversão dos judeus.

Quanto ao que se põe contrariamente, deve dizer-se que a esperança dos novos céus e da nova terra não é oposta à cristianização do mundo, que resulta da ordem dada por Cristo a seus discípulos: “Ide e ensinai a todas as gentes, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mat. 28, 19). Antes, a cristianização do mundo está para o que assim se espera como um meio para o fim. – Mas de fato não se deve rezar pela salvação do mundo se isto se entende no sentido impugnado pela fé.


[1] Summa Theol., I, q. 1, a. 8, ad 2.
[2] Cf. Mat. 24, 35.
[3] Cf. Is. 66, 22; 2 Pedr. 3, 13; Ap. 21, 1-5.
[4] Lib. I, cap. 153-171.
[5] 2 Pedr. 3, 13.
[6] 1 Jo. 2, 15-16.
[7] Tiag. 4, 4.
[8] Mat. 18, 7.
[9] 1 Jo. 5, 19.
[10] Jo. 15, 18-19.
[11] Jo. 14, 30.
[12] Jo. 16, 11.
[13] 1 Jo. 5, 4.
[14] Jo. 3, 17.
[15] Cf. Jo. 3, 16, e Rom. 8, 32.
[16] Mat. 26, 27-28.
[17] 14, 24.
[18] Ambas as passagens extraímo-las tais quais se encontram na Bíblia Sagrada traduzida da Vulgata e anotada pelo Padre Matos Soares (15.ª ed., São Paulo, Edições Paulinas, 1962). – Em La Santa Biblia, traducción directa de los textos primitivos por Mons. Dr. Juan Straubinger (La Plata, Universidad Católica de La Plata, 2007), as mesmas passagens encontram-se assim: “Bebed de él todos, porque esta es la sangre mía de la Alianza, la cual por muchos se derrama para remisión de pecados” (Mat. 26, 27-28); “Esta es la sangre mía de la Alianza, que se derrama por muchos” (Marc. 14, 24).
[19] Jo. 18, 36.
[20] 1 Cor. 7, 31.
[21] 1 Cor. 5, 9-10.
[22] Em Da Cidade de Deus.
[23] “Deve dizer-se que [o Império Romano] não cessou, senão que se comutou de temporal em espiritual, como diz o Papa Leão no sermão sobre os apóstolos. E por isso se deve dizer que a apostasia do Império Romano [referida em 2 Tessalonicenses] se entende não só do temporal, mas do espiritual, ou seja, da fé católica da Igreja Romana. Mas este sinal é conveniente, porque, assim como Cristo veio quando o Império Romano dominava sobre todos, assim também, inversamente, um sinal do Anticristo é a apostasia daquele” (Tomás de Aquino, Comentário à Segunda Epístola aos Tessalonicenses, caput 2, lectio 1).
[24] 2 Tess. 2, 3.
[25] 2 Tess. 2, 3.
[26] 2 Tess. 2, 8. – “… com o espírito de sua boca, isto é, com seu mandato; porque Miguel há de matá-lo no monte das oliveiras, de onde Cristo ascendeu… [Dicendum est, quod nondum cessavit, sed est commutatum de temporali in spirituale, ut dicit Leo Papa in sermone de apostolis. Et ideo dicendum est, quod discessio a Romano imperio debet intelligi, non solum a temporali, sed a spirituali, scilicet a fide Catholica Romanae Ecclesiae. Est autem hoc conveniens signum, quod sicut Christus venit quando Romanum imperium omnibus dominabatur, ita e converso signum Antichristi est discessio ab eo]” (Tomás de Aquino, Super II Epistolam B. Pauli ad Thessalonicenses lectura, caput 2, lectio 2).
[27] Rom. 11, 11-12: “Digo, pois: Porventura tropeçaram eles [os judeus] de modo que caíssem [para sempre]? Não, certamente. Mas por seu delito veio a salvação para os gentios, para incitá-los à emulação. Ora, se seu delito foi a riqueza do mundo, e sua redução a riqueza dos gentios, quanto mais [não o será] sua plenitude? [Dico ergo : Numquid sic offenderunt ut caderent ? Absit. Sed illorum delicto, salus est gentibus ut illos æmulentur. Quod si delictum illorum divitiæ sunt mundi, et diminutio eorum divitiæ gentium : quanto magis plenitudo eorum?]”.

[28] Apoc. 20, 11 s.; 21. – Ponha-se, porém, que nenhum curso histórico é linear, senão que sempre consta de idas e vindas não raro inesperadas; além de que uma coisa é o desenho profético de dada sucessão de acontecimentos – e as profecias são como uma vista aérea de determinado terreno e seus acidentes geográficos –, outra o percurso que se faz nesse mesmo terreno, percurso que, pela própria natureza das coisas, não pode deixar de topar com surpresas e eventos súbitos.

[29] “Vel etiam qui totaliter cadent decepti ab Antichristo, Iudaeis conversis in pristinum fervorem restituentur. Et etiam sicut Iudaeis cadentibus, gentiles post inimicitias sunt reconciliati, ita post conversionem Iudaeorum, imminente iam fine mundi, erit resurrectio generalis, per quam homines ex mortuis ad vitam immortalem redibunt” (Super Epistolam B. Pauli ad Romanos lectura, caput 11, lectio 2).
[30] Resta, porém, conciliar o dito com Apocalipse 6, 13-17. Fica para outro lugar; mas diga-se que antes parece – apenas parece – condizer com a última interpretação de Rom. 11, 11-12 admitida por Santo Tomás. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *