C. N.
(exposição)
Se todas as coisas apetecem o bem[1]
Efetivamente, todas as coisas apetecem o bem. E insista-se: todas as coisas, não só as que conhecem de qualquer maneira, mas ainda as desprovidas de todo e qualquer conhecimento. Se assim não fosse, como o prova Aristóteles no livro II da Física, tudo se daria ou se produziria por acaso. Ora, o que se produz por acaso só se dá poucas vezes e não se repete com regularidade alguma; mas, ao olharmos o mundo, constatamos facilmente que tudo se produz o mais das vezes com repetição regular. Se assim é, é necessário dizer que todas as coisas se ordenam e se dispõem como a um fim, porque a regularidade com que se produzem não poderia dar-se se não se ordenassem a um fim e, portanto, se não o apetecessem.
Pois bem, as coisas ordenam-se ou dirigem-se a um fim de duas maneiras: antes de tudo, por si mesmas, assim como o homem se dirige por si mesmo a determinado lugar; depois, enquanto movidas por outro, assim como a flecha é atirada pelo arqueiro a determinado lugar. Ora, só as coisas que conhecem de algum modo podem dirigir-se por si mesmas a um fim, enquanto, insista-se, as coisas que não conhecem têm de ser dirigidas ou ordenadas por outro, que justamente conhece aquilo a que as dirige ou ordena. Desse modo, ainda que necessitem ser ordenadas por outro, também as coisas que não conhecem podem ser dirigidas a um fim determinado. Isto, porém, se dá de dois modos. Às vezes a coisa que é dirigida a um fim é tão somente lançada ou movida pelo que a lança, sem receber nenhuma forma que a faça inclinar-se ou tender naturalmente a tal fim. Por isso se diz que a inclinação dada pelo arqueiro à flecha para que esta atinja o alvo é uma inclinação violenta. Às vezes, todavia, aquilo que é dirigido ou inclinado a um fim recebe do que o dirige ou inclina uma forma pela qual essa inclinação lhe convém naturalmente: assim como Deus deu à pedra a inclinação natural a ser atraída pela terra, ao contrário do que fez ao fogo, que naturalmente se eleva e não é atraído pela terra. Desse modo, portanto, todas as coisas naturais se inclinam ou se ordenam naturalmente ao que lhes convém, de maneira que de certo modo alcançam por si mesmas seu respectivo fim: ou seja, não são pura e simplesmente conduzidas, como se dá com a flecha por inclinação violenta. Em outras palavras, as coisas naturais, graças a princípios naturais postos nelas por Deus, como que cooperam com aquele que as inclina ou ordena, ou seja, Deus mesmo. Com efeito, a natureza é o efeito de certa arte divina intrínseco aos entes que os faz mover-se por si mesmos a seu fim.
Assim, o que é ordenado ou inclinado por outro a um fim é inclinado a algo que está na intenção daquele que o inclina ou dirige: com efeito, a flecha é atirada para o alvo mesmo que está na intenção do arqueiro. Mas todas as coisas naturais, mediante certa inclinação natural, são inclinadas ou ordenadas a seu fim pelo primeiro motor, que é Deus, razão por que é necessário que aquilo a que cada coisa natural naturalmente se inclina seja algo querido por Deus mesmo, algo que esteja em sua intenção. Sucede porém que, em sua vontade, Deus não tem outro fim que a si mesmo, não apetece senão a si mesmo, e, porque ele é a própria bondade ou a essência mesma da bondade, é necessário que todas as outras coisas sejam naturalmente inclinadas ao bem: e dizer bem é dizer fim. Ora, apetecer não é senão inclinar-se a algo e ordenar-se a este algo. Por conseguinte, porque todas as coisas são dirigidas ou ordenadas por Deus ao bem, mediante algum princípio posto nelas por Deus e graças ao qual tendem por si mesmas ao bem, deve dizer-se que toda e qualquer coisa apetece naturalmente o bem. Com efeito, se as coisas fossem inclinadas ao bem sem ter em si nenhum princípio para tal inclinação, poderíamos dizer que seriam conduzidas ao bem, mas não que apetecessem o bem. Mas, em razão do princípio intrínseco que receberam de Deus, diz-se que todas as coisas apetecem o bem, justamente enquanto tendem espontaneamente a ele.
Por isso se diz em Sabedoria 8, 1 que a sabedoria divina «dispõe todas as coisas com suavidade», o que é o mesmo que dizer que todas as coisas tendem por seu próprio movimento àquilo mesmo a que são ordenadas por Deus.
(Continua.)

[1] Vide Santo Tomás de Aquino, De Verit. q. 22, a. 1; Super Sent. I, d. 34, q. 2, a. 1, ad 4 e IV, d. 49, q. 1, a. 2, qc. 1 ; supra q. 21, a. 2; Cont. Gent. III, cap. 3; Super Dion. De div. nom., cap. 4, l. 3 e 9; Sum. Th. I, q. 5, a. 1 e a. 2, ad 1; Super Ethic. I, l. 1.

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